Entre a promessa de integração e o apelo por leis mais duras, o Brasil segue transformando a segurança pública em palco de disputa política, apontam pesquisadores.

A megaoperação policial realizada no Rio de Janeiro, que terminou com mais de 120 mortos, na terça-feira (28), e o confronto de militares cearenses contra suspeitos em Canindé, que deixou sete mortos, na sexta-feira (31), voltaram a colocar os rumos da segurança pública no Brasil no centro do debate político nacional. Tanto o Governo Federal quanto os gestores estaduais defendem uma maior integração entre as forças de segurança. Contudo, os entes divergem sobre quais medidas adotar para ir além no combate à violência, especialmente a provocada por organizações criminosas.
Em meio aos impasses, deputados e senadores defendem propostas de endurecimento penal. Já pesquisadores especialistas em segurança pública avaliam que tais medidas são insuficientes e, somadas aos episódios recentes no Ceará e no Rio de Janeiro, expõem o traço histórico da política brasileira de tratar a segurança pública apenas com repressão.
Entre a integração e a disputa política
Na última semana, após a contabilização das 121 mortes no Rio de Janeiro, o presidente Lula (PT) e o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, defenderam a integração entre as forças estaduais e federais. Desde o início do ano, o Executivo mira a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança Pública.
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“Precisamos de um trabalho coordenado que atinja a espinha dorsal do tráfico sem colocar policiais e famílias inocentes em risco”, escreveu Lula nas redes sociais. Lewandowski destacou que o crime organizado “não é mais local, é nacional e global” e que o país “precisa fazer um entrosamento das forças federais, estaduais e até municipais”.
O cerne da PEC prevê a garantia de um status constitucional ao Sistema Único de Segurança Pública (Susp), criando uma espécie de Sistema Único de Saúde (SUS) da segurança pública. A matéria está em tramitação desde abril na Câmara dos Deputados, mas avança em passos lentos.
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Um dos pontos de divergência entre o Governo e congressistas envolve a prerrogativa exclusiva da União para legislar sobre a segurança pública. A medida enfrenta resistência de governadores e foi retirada do texto da Câmara pelo relator, o deputado Mendonça Filho (União).
“Essa proposta não é interferência, é cooperação. Os governadores que ainda resistem à PEC precisam refletir e somar forças com o Governo Federal. O país exige uma resposta unificada e eficaz. Como líder do Governo na Câmara, vamos atuar em Brasília e conversar com os pares para construir esse consenso e aprovar a PEC com ampla discussão com a sociedade. O Brasil merece paz — e isso só virá com unidade, planejamento e compromisso coletivo”, disse José Guimarães (PT), líder do Governo na Câmara dos Deputados.
Enquanto o Planalto prega o entrosamento da União, dos estados e dos municípios, parte dos governadores de centro e de direita criaram um consórcio estadual focado na área de segurança pública. O grupo promete integrar contingente, inteligência e recursos para combater o crime.
Compõem o colegiado os governadores:
- Cláudio Castro (PL), do Rio de Janeiro;
- Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais;
- Ratinho Júnior (PSD), do Paraná;
- Jorginho Mello (PL), de Santa Catarina;
- Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás;
- Eduardo Riedel (PP), do Mato Grosso do Sul;
- Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo;
- Ibaneis Rocha (MDB), do Distrito Federal.
Para o sociólogo Jonathan da Motta, doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a politização partidária é um dos maiores entraves ao avanço das propostas de combate à violência.
“A segurança pública é um processo político e, como todo processo político, envolve negociação, mas, no Brasil, esse tipo de politização cai no campo partidário e não no da construção de um consenso e de uma política ampla e popular (…) Por isso vimos, no Rio de Janeiro, literalmente a segurança pública se tornando um palanque político”, ponderou.
Em busca de penas mais duras contra o crime organizado
Além da PEC da Segurança Pública, o Governo Lula e o Congresso Nacional buscam respostas na via punitiva. O Planalto enviou para a Câmara dos Deputados, na noite de sexta-feira, o Projeto de Lei Antifacção, que aumenta penas e amplia as hipóteses de agravamento por envolvimento com facções. O texto, que ainda será recebido pelos legisladores, inclui medidas mais consensuais — se comparado à PEC da Segurança — para evitar a resistência dos congressistas e governadores.
O que prevê o PL Antifacção
- Penas mais duras para integrantes de facções que exerçam controle territorial — como o domínio de comunidades ou bairros — ou que financiem ações violentas;
- Aumento de pena em casos de homicídios cometidos por ordem de organizações criminosas;
- Ampliação da lista de agravantes para incluir situações como o uso de armas de uso restrito, explosivos, morte ou lesão de agentes de segurança, envolvimento de crianças e adolescentes, participação de servidores públicos, atuação em órgãos do Estado e ações com alcance internacional;
- Autorização para infiltração de policiais e colaboradores dentro das facções durante as investigações;
- Criação de empresas de fachada (pessoas jurídicas fictícias) como instrumento legal para facilitar essas operações de infiltração.
Além dessas propostas, o deputado federal cearense Danilo Forte (União) tenta aprovar um projeto de lei que classifica como terrorismo os atos praticados por facções criminosas. Ele aposta que a tramitação deve acelerar em meio aos debates nacionais sobre a violência.
“O que aconteceu no Rio de Janeiro é um retrato da falência da capacidade do Estado brasileiro de enfrentar o crime organizado. Precisamos reagir e combater agora, porque, ou acabamos com ele, ou ele acaba com o Brasil”, disse o parlamentar.
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Uma das preocupações do político envolve ainda o avanço da criminalidade sobre o próprio sistema político. No Ceará, investigações recentes revelaram a tentativa de influência das facções em campanhas eleitorais. O caso mais simbólico é o de Santa Quitéria, onde o ex-prefeito Braguinha (PSB) foi preso e cassado por suspeita de ter sido beneficiado com o apoio do Comando Vermelho nas eleições locais.
Operações policiais recentes em São Paulo e no Rio de Janeiro também tentaram desbaratar braços de atuação do PCC e do CV nas duas maiores capitais brasileiras. Em SP, a ação mirou um grupo criminoso que usava fintechs para lavagem de dinheiro, com valores movimentados que superam a marca de R$ 46 bilhões. Já no RJ, a investida foi contra o deputado estadual TH Jóias (MDB), acusado de intermediar a compra e venda de armas para a facção carioca.
No projeto, Danilo Forte defende que as penas para integrantes de organizações criminosas sejam cumpridas integralmente em regime fechado. Ele quer ainda acabar com medidas como audiência de custódia, indulto e saídas temporárias. “A sociedade quer segurança, e o momento requer coragem da representação popular”.
A solução passa por penas mais duras?
Para os pesquisadores ouvidos pelo PontoPoder, propostas que aumentam as penas contra integrantes de facções criminosas não têm sustentação prática.
“O grande problema da violência no Brasil é, sobretudo, como as instituições punem o crime e o criminoso. Temos uma construção de segurança baseada em punir a base do problema, isso não vai resolver, é enxugar gelo. Se matar traficante fosse solução dos problemas, o Rio de Janeiro teria índices de criminalidade similares à Suíça, Suécia e Dinamarca”
Segundo ele, as forças policiais deveriam ter um foco maior em desarticular financeiramente a estrutura das facções. “Em nenhum lugar do mundo o recrudescimento da pena resolveu o problema da violência. Ele só serviu para punir os mais pobres”, analisou Jonathan da Motta.
De acordo com o pesquisador, o principal papel da política no combate à violência está em combater a corrupção policial e institucional, reduzir a desigualdade e gerar emprego e renda. “Sem atacar a desigualdade, nenhum projeto de lei vai resolver o problema da segurança pública”, acrescentou.

Contudo, Motta destaca que as ações policiais em comunidades brasileiras viraram uma resposta política, “sobretudo eleitoreira”, para uma população apavorada.
“As formas que temos de resolver o problema da violência é consultando a comunidade, ouvindo policiais, acadêmicos, juristas, estados, observando experiências e construindo isso coletivamente, não com uma fórmula mágica, como alguns políticos costumam apresentar”, concluiu.
Por onde começar o combate às organizações criminosas?
O professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará (UFC), Artur Pires, defende ações mais certeiras no combate às organizações criminosas. “Não podemos pensar a segurança pública sob o viés de invadir comunidades periféricas, matar pessoas e achar que assim está resolvendo o problema”, disse.
“É preciso mudar o nosso paradigma do que é segurança pública e de quais ações devemos fazer para resolver o problema da criminalidade violenta. As facções no Brasil se expandiram a tal ponto dentro da sociedade que já tem tentáculos muito fortes dentro dos sistemas político, jurídico e empresarial”, afirmou.
“A curto prazo, é preciso pensar em uma concatenação dos governos federal e estaduais, nesse sentido, a PEC da Segurança Pública é um bom caminho de troca de informações e tecnologias”, acrescentou. Ele defendeu ainda ações de combate à corrupção e ilegalidade dentro do Estado, incluindo policiais, políticos e integrantes do judiciário.
“A médio e longo prazo precisamos pensar a segurança pública vinculada com áreas sociais. Ou seja, pensar em segurança pública é pensar na abertura de escolas de tempo integral nas periferias, inauguração de bibliotecas comunitárias, centros culturais, construção de quadras poliesportivas, moradia digna, alimentação de qualidade e emprego”
E o que foi feito após os casos do Rio de Janeiro e do Ceará?
Em menos de 24 horas após o confronto nos complexos da Penha e do Alemão, o mais sangrento da história recente do Brasil, os governos federal e estadual do Rio de Janeiro anunciaram a criação de um escritório emergencial para enfrentar o crime organizado.
“É um fórum onde as forças vão conversar entre si, tomar decisões rapidamente até que a crise seja superada. Este é um embrião daquilo que nós queremos criar com a PEC da Segurança Pública que está sendo discutida no Congresso Nacional. Nós queremos fazer o entrosamento das forças federais, estaduais e até municipais no enfrentamento deste flagelo”, disse Lewandowski.
Na esteira dos acontecimentos, o presidente Lula sancionou a Lei 15.245 que tipifica novas condutas criminosas e aumenta a proteção dos agentes públicos. Pelas novas regras, a contratação de faccionados para ações criminosas passa a ter pena de reclusão de 1 a 3 anos. A obstrução de ações contra o crime organizado também passa a ser crime, com pena de quatro a 12 anos.
No Legislativo, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União), anunciou a instalação de uma CPI do Crime Organizado, com foco na atuação de milícias e facções. “É hora de enfrentar esses grupos criminosos com a união de todas as instituições do Estado brasileiro”, ressaltou. Na Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos), planeja criar uma comissão externa para acompanhar o desfecho da operação no Rio de Janeiro.
Mortes por intervenção policial
Logo após a ação policial, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), apressou-se em fazer um diagnóstico. Segundo ele, apesar das 117 pessoas da comunidade e dos quatro policiais mortos, a intervenção “foi um sucesso”. “De vítimas lá, só tivemos os policiais”, declarou Castro.
Enquanto, no Rio de Janeiro, os legistas ainda tentavam identificar os corpos, uma nova operação policial, dessa vez no Ceará, terminou com sete suspeitos mortos. O intenso confronto armado ocorreu no bairro Campinas, em Canindé, na madrugada de sexta-feira (31). Segundo o Governo do Estado, os suspeitos efetuaram disparos em direção às viaturas e lançaram dois artefatos explosivos em via pública.
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A ação foi exaltada pelo governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), e ganhou um reconhecimento público de sucesso do governador Cláudio Castro. “Nenhum policial morto. Nenhum inocente alvejado. A população protegida. Parabéns à nossa Polícia Militar do Ceará!”, exaltou o petista.
Sucesso ou desastre?
Ao PontoPoder, o professor Artur Pires disse ter uma avaliação diferente sobre esse tipo de operação. Sobre o caso do Rio de Janeiro, por exemplo, ele afasta a ideia de “sucesso”, citada por Castro. Para o pesquisador, o que houve foi “um grande desastre, um fracasso retumbante”.
“Uma operação que visava cumprir 100 mandados de prisão terminar com mais de 120 mortes só atesta a incapacidade dos órgãos de segurança pública de fazerem cumprir a lei. No Brasil, não temos a execução sumária prevista em lei, mas é o que se observa em operações assim, que em nada colaboram para diminuir o poder do Comando Vermelho no Rio de Janeiro”, afirmou.
Pires ressaltou ainda que, enquanto o Estado adiar apenas pela via repressiva, seguirá retroalimentando a criminalidade. “A prisão no Brasil é uma incubadora da criminalidade violenta. Todas as facções brasileiras foram constituídas dentro das prisões”, disse.
“De maneira alguma a solução passa por aumentar penas ou encarcerar mais pessoas. O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, número que só se avoluma, e não vemos melhoras nos índices de violência e criminalidade urbana. É de se pensar também que as nossas prisões são berçários para as facções, porque (…) todas as facções brasileiras foram constituídas dentro do universo das prisões”, acrescentou.
“Não faltam leis no Brasil no sentido de punir as pessoas que cometem crimes. O que está faltando é uma coordenação entre as polícias estaduais e os órgãos de segurança federais, além de um maior desenvolvimento de operações de inteligência policial para se antecipar às ações desses grupos, mas, infelizmente, a segurança pública tem sido tratada no Brasil como caça-votos, como uma questão eleitoreira”
Na avaliação dos pesquisadores, o Estado brasileiro continua apostando na repressão como solução imediata contra o avanço da criminalidade enquanto o antídoto para o problema, segundo eles, passa por transformar a segurança em política de Estado, com investimentos em inteligência, coordenação federativa e políticas sociais.









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