O Primeiro Mapeamento das Defensoras e Defensores Públicos do Ceará apontou os principais desafios da categoria.
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A disparidade entre a estrutura da Defensoria Pública do Ceará (DPCE) e o volume das demandas assumidas pelos seus membros tem comprometido a qualidade de trabalho no órgão, segundo levantamento sobre a categoria. Essa é a opinião de 93,5% dos profissionais ouvidos no Primeiro Mapeamento das Defensoras e Defensores Públicos do Ceará, encomendado pela Associação dos Defensores Públicos do Estado do Ceará (ADPEC), ao qual o PontoPoder teve acesso.
Os efeitos também são sentidos pela população vulnerável, considerando que, assim, o acesso à Justiça fica comprometido. Em complemento, para 64,1% da categoria, a população das suas respectivas comarcas não está plenamente assistida pela instituição.
O diagnóstico dialoga com relatos dos próprios defensores sobre problemas de segurança, saúde mental e acúmulo de funções, aprofundados pelo déficit orçamentário. Quanto a esses fatores, a pesquisa revelou a seguinte percepção:
- 53,5% dos defensores relataram ter a saúde mental prejudicada pelo ofício;
- 61,8% já presenciaram casos de violência ou ameaças contra um colaborador da sua comarca;
- 54% dos defensores que exercem atividades cumulativas acreditam que existe cobrança de trabalho por parte da instituição desproporcional à estrutura ofertada;
- Entre as principais dificuldades de acesso da população à Defensoria, estão a baixa quantidade de defensores e de outros servidores em atividade, a distância do local de atendimento, a desconhecimento sobre a Defensoria e outros fatores.
Em análise ampliada, a edição de 2025 da Pesquisa Nacional da Defensoria Pública, complementar ao estudo encomendado pela ADPEC, mostrou que o orçamento reservado à DPCE no ano passado correspondeu à apenas 0,96% do orçamento fiscal do Ceará.
Do mesmo modo, análise comparativa entre o orçamento aprovado para a DP-CE, MP-CE (Ministério Público) e TJ-CE (Tribunal de Justiça) revela o desequilíbrio entre o quadro financeiro das instituições que compõem o Sistema de Justiça. Para o orçamento de 2025, os valores destinados ao Poder Judiciário e ao Ministério Público serão, respectivamente, 777,8% e 234,7% maiores que o orçamento da Defensoria Pública.
A defensora pública-geral do Estado, Sâmia Farias, reconhece essas dificuldades e ressalta o esforço institucional adotado para atenuar o cenário. “A gente recebe com tranquilidade e responsabilidade o diagnóstico que a associação fez. Não foram ouvidos todos os defensores, somente um percentual, mas não tem como a gente fechar os olhos para realidade, para o que os defensores pensam e até pautar ações da Defensoria nesse sentido”, declarou.
Nessa perspectiva, a instituição tem buscado reforçar fontes de receita para ampliar a sua composição nos próximos meses. Nesta segunda-feira (3), dez novos defensores e defensoras públicas aprovados no concurso de 2022 tomaram posse de seus cargos.
Agora, o quadro da Defensoria cearense conta com 379 membros. Ainda há 80 cargos vagos, cujo provimento pode acontecer no próximo biênio com novas convocações, já que validade do concurso foi prorrogada até 2027.
Este material compõe uma série de reportagens sobre o atual retrato da Defensoria Pública do Ceará. Ao longo da semana, o PontoPoder abordará discussões sobre segurança, orçamento e interiorização, fundamentais para o pleno trabalho na instituição.
O que é a Defensoria?
A Defensoria Pública da União e dos Territórios (como a DPCE) é uma instituição essencial à função jurisdicional do Estado, cabendo-lhe:
Prestar gratuita e integral assistência jurídica, judicial e extrajudicial, aos necessitados, compreendendo a orientação, postulação e defesa de seus direitos e interesses, em todos os graus e instâncias, compreendido entre estes, o juízo das pequenas causas.
A instituição atua em todas as áreas do Direito, como família, criminal, moradia, consumidor, etc., de forma especializada. No campo judicial, pode acompanhar inquéritos, apresentar ações, atuar em processos existentes, promover conciliações e representar grupos ou pessoas hipossuficientes em todas as instâncias, desde os Juizados Especiais até os Tribunais Superiores.
Os defensores também podem observar as atividades de estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, a fim de assegurar direitos e garantias fundamentais aos custodiados.
Aproximadamente 94% da população do Ceará, cerca de 8,7 milhões de pessoas, pode ser beneficiada pelos serviços da Defensoria, já que tem renda de até três salários mínimos. Além dos hipossuficientes, são considerados vulnerabilizados os grupos compostos por mulheres vítimas de violência, idosos, crianças, adolescentes e pessoas levadas ao cárcere.
O dia a dia de defensores no Ceará
A concepção pessimista sobre o comprometimento da qualidade do trabalho da Defensoria abrange profissionais de diversos municípios e graus de jurisdição de maneira proporcionalmente similar.
Contudo, especificamente dentro das atividades de primeira instância – cujos processos são remetidos aos juízes de direito titulares de varas especializadas, como as criminais e de família, ou não –, nota-se uma assimetria.
A situação é pior entre defensores das comarcas de entrâncias inicial (70%) e intermediária (65,5%). Ou seja, o problema é predominante naquelas comarcas de menor porte, com até cinco varas (unidades básicas do Judiciário, onde o juiz realiza suas atividades), mais comuns em cidades do Interior.
Inversamente, menos defensores na ativa (28,9%) atendem nessas unidades, em comparação aos de entrância final ou especial (ainda em primeira instância, comarcas com mais de cinco varas), que são 60,6%, segundo o levantamento. Os demais atuam em segundo grau de jurisdição (junto aos desembargados do Tribunal de Justiça) ou em Tribunais Superiores.
O descompasso nas comarcas menores se deve à menor divisão do trabalho, segundo a presidente da ADPEC, Kelviane Barros. Por exemplo, a comarca de Fortaleza tem classificação especial e conta com 153 varas, considerando os juizados especiais, reservados a causas de menor complexidade.
Assim, o problema se dilui, ainda que não desapareça por completo, já que o volume de processos é bem maior devido ao porte populacional.
“Numa área cível em Fortaleza, nós temos as varas Cíveis, de Família, da Fazenda Pública, de Registro Público, de Sucessões. Então, esse trabalho é dividido, é especializado. Já em uma comarca de entrância menor, há uma diversidade de matérias concentradas (num mesmo local)”, observa.
O problema da concentração de trabalho de vários municípios
A situação piora em comarcas que também recebem demandas de municípios adjacentes, precarizando ainda mais o serviço. O fluxo é observado em ao menos oito núcleos de pequeno porte, em especial no de Redenção, que absorve processos de duas comarcas agregadas (Acarape e Barreira), e na maioria das unidades médio e de grande porte.
Nessa dinâmica, os defensores acumulam atividades e têm que adotar um calendário próprio de despachos. Normalmente, segundo Barros, eles reservam um dia da semana para fazer atendimentos presenciais em outro município.
Nós temos colegas que se deslocam 300 km (de uma comarca a outra) para poder fazer esse atendimento. […] Trata-se de um esforço institucional muito forte. Quem está na gestão da instituição organiza esse trabalho exatamente para que a Defensoria chegue em mais locais, senão a gente estaria em menos locais ainda.
Muitas vezes, o trabalho não se limita aos dias úteis e horários comerciais, podendo se estender por fins de semana e feriados contextos mais precários. Não à toa, os defensores que atuam no primeiro grau de jurisdição são os que mais se queixam (57,9%) de problemas com saúde mental.
Dos defensores acreditam que a população das suas comarcas não está plenamente assistida pela instituição.
É necessário dar conta de todos os processos e audiências designadas dentro dos prazos processuais. Do contrário, os defensores podem ser alvo de apuração da Corregedoria do órgão, e as próprias partes podem sofrer prejuízos na condução das suas demandas.
Além disso, o cenário de sobrecarga ainda pode causar erros na condução dos atendimentos e aprofundar problemas como a morosidade no trâmite dos processos.
O que a Defensoria tem planejado fazer
Além da convocação de mais defensores concursados, a defensora Sâmia Farias destaca iniciativas para otimizar os trabalhos nas comarcas e garantir mais atendimentos.
Um exemplo disso é a adoção de ferramentas de inteligência artificial (IA) próprias para automatizar processos burocráticos das atividades-fim com segurança. Lançadas no ano passado, a instituição conta com as seguintes IAs atualmente:
- Seu Tanaka: sistema que transcreve audiências virtuais, tarefa feita manualmente em anos anteriores;
- Martinha: sistema que lê e interpreta longos arquivos PDFs e ajuda na criação de petições, permitindo, por exemplo, fazer questionamentos sobre o conteúdo de um documento.
“(Essas ferramentas) vêm nesse aprimoramento de atuação, mas sem esquecer a atuação fim da Defensoria, que é realmente estar de portas abertas e perto da população”, pontua. Ainda nessa linha, o órgão está integrando o seu sistema ao Processo Judicial eletrônico (PJe), que facilita o fluxo de trabalho.
Em outra frente, programas como o itinerante Defensoria em Movimento possibilitam atendimentos não só em localidades sem cobertura permanente da instituição, como também o alívio das demandas de núcleos já instalados. Nos próximos meses, novas vans devem ser adquiridas para ampliar os trabalhos.
“Na Capital, por exemplo, há parcerias como a inauguração (de núcleo) no Cuca da Barra do Ceará, porque a gente sabia que os assistidos ali da Barra, para chegar na sede de atendimento (bairro Luciano Cavalcante), levavam cerca de 2 horas de transporte público”, relatou a defensora geral.

Nesse âmbito, além da assistência jurídica e judicial e das soluções extrajudiciais para casos como divórcio consensual e guarda de filhos, a iniciativa conta com atendimentos oncológicos e geral e com emissão ou revisão de documentos.
A DPCE também recorre a convênios para pulverizar o acesso à justiça pelo Ceará e mitigar os efeitos do retrato atual do órgão. É o caso das parceria com os Núcleos de Práticas Jurídicas (NPJs) com mais de 30 universidades, que realizam parte dos atendimentos de peticionamento e conciliação nos municípios.
O órgão também tem estabelecido parcerias com os municípios para fortalecer a rede permanente da Defensoria, por meio da cessão de imóveis onde serão instaladas as suas bases. No último biênio, 11 núcleos foram inaugurados no Interior.
A partir do momento em que tem defensores titulares no local, a gente passa à estruturação das sedes, de ambientes adequados. Era muito comum em alguns municípios a Defensora funcionar dentro dos fóruns, e agora a gente vem nessa política de realmente ter um espaço adequado para a prestação de serviço e para receber melhor os nossos assistidos.
Em Trairi e Beberibe, inclusive, foram adotados novos modelos de construções, voltadas para a sustentabilidade. As obras, classificadas como “rápidas, modulares e economicamente viáveis” por Sâmia Farias, devem ser replicadas em outras unidades. A próxima é a de São Gonçalo do Amarante.

Retrato dos últimos anos
A situação já foi pior, lembra Roque Pontes, professor e coordenador do curso de Direito da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA). Ele acompanha esse histórico de perto porque o NPJ da UVA compõe a rede de convênios da Defensoria em prol do acesso à Justiça.
Com o esforço de alunos de semestres avançados da faculdade de Direito e professores, iniciativas como essa ajudam a pulverizar os atendimentos à população vulnerabilizada no Ceará.
Além dessas parcerias, a instituição tem conseguido abarcar mais demandas nos últimos 16 anos com o aumento de investimentos na instituição, ainda que em volume deficiário.
“O número de defensores que existia no Estado e a quantidade que tem hoje, além do valor de salário equiparado ao do Ministério Público, foi algo que melhorou muito a carreira. Logicamente, todo serviço concedido em grande quantidade vai ter os seus problemas, sempre vai faltar alguma coisa”, examina o docente.
De fato, a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública indica essa tendência de crescimento. Entre 2004 e o ano passado, o orçamento executado saiu de R$ 31,5 milhões para R$ 349 milhões. Em 2009, período de referência de Roque Pontes, a cifra foi de R$ 123,6 milhões. Os valores estão corrigidos pelo IPCA (IBGE) de março de 2025.
Essas mudanças acompanharam mudanças na legislação. Naquele ano, a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública foi alterada para ampliar as suas funções institucionais, conceder novas prerrogativas aos defensores e garantir mecanismos de participação social, por meio da criação da Ouvidoria-Geral. Também consolidou a autonomia funcional e administrativa, concedidos em 2004, para elaboração de sua proposta orçamentária.
A partir de 2014, a crescente de investimentos foi maior, acompanhando mudanças na legislação cearense que reconheceu esses princípios a nível local e na própria Constituição Federal.
Esta fixou regras para a distribuição de defensores pelos estados e determinou que, nos oito anos seguintes, o órgão devia indicar membros para todas as unidades jurisdicionais. Até hoje, contudo, a meta não foi batida por nenhum ente federado.
Como avançar?
Por mais que a Defensoria Pública do Ceará tenha passado por suplementações ao longo dos anos, o orçamento executado, hoje, está aquém do necessário para a universalização do acesso à Justiça. Esse elemento é fundamental para executar o planejamento do biênio.
A Pesquisa Nacional mostrou uma profunda disparidade em relação ao Poder Judiciário e ao Ministério Público. Os quadros financeiros dessas instituições são, respectivamente, 777,8% e 234,7% maiores que o orçamento da DPCE.
Isso tem a ver com o tempo de existência da Defensoria, explica Sâmia Farias, que não teve vigência suficiente para progredir sua receita. Como as demais instituições, ela se prende à Lei Diretrizes Orçamentárias, à Lei Orçamentária Anual e ao teto fiscal para as instituições autônomas, instituído em 2016.
“Quando iniciou ali, principalmente o teto fiscal em 2016, a Defensoria ainda era muito pequena porque a autonomia ocorreu apenas em 2014. Desde então, existe esse desafio de aumentar o orçamento diante essas normativas que acabam por restringir esse crescimento”, afirma.
Isso não isenta o órgão de articular reforço financeiro com o Governo do Estado. “(A gente faz) a sensibilização dessa necessidade de ter um olhar diferenciado para a Defensoria Pública por ser a menor carreira, por ser a mais recente e pelo serviço que presta”, relata.
Foi assim que, no fim do ano passado, a DPCE conseguiu a cessão de uma parte do teto fiscal para ampliar os seus gastos, o que permitiu as convocações feitas em 2025, por exemplo. “O mais importante é que se tenha esse contato, esse diálogo e que se sensibilize mesmo sobre a necessidade de investir na Defensoria Pública para levar o acesso à justiça diretamente a população vulnerabilizada”, complementa.
A expectativa é de que, nos próximos anos, os recursos do Tesouro Estadual, os repasses dos ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos, além dos financiamentos bancários, reforcem a receita do órgão e sejam aplicados no planejamento de expansão e valorização da carreira.











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