O Diário do Nordeste conversou com uma ex-funcionária da AAPEN (antiga ABSP), que está na lista das entidades investigadas

Pagamentos de comissões e contratos alterados. Por trás da fraude no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do enriquecimento dos donos das associações, centenas de ‘gerentes comerciais’ eram responsáveis por planilhas, onde contabilizavam ‘novas vítimas’ e o que ganhavam com a assinatura de cada uma delas.
O Diário do Nordeste conversou com uma ex-funcionária da Associação de Aposentados e Pensionistas Nacional (AAPEN), antiga Associação Brasileira de Apoio aos Aposentados, Pensionistas e Servidores Públicos (ABSP), que está na lista das entidades investigadas pela Polícia Federal e Controladoria Geral da União (CGU). A mulher, de identidade preservada, confessa que na época (de 2017 a 2019) entendia a ilegalidade do serviço.
“Eu já cheguei a cadastrar 36, 40 pessoas, por dia. O importante era captar a assinatura. Tinha propina para o INSS, para os corretores e também nos cartórios para poder abrir as firmas. Era todo um esquema“, detalha a ex-funcionária.
A advogada Cecília Rodrigues Mota, uma das investigadas pela fraude, já era a presidente da ABSP em 2017. Ao lado de Cecília, estava o empresário Natjo de Lima Pinheiro, que na época ficava à frente de outras associações e montou uma clínica de serviços de saúde para ‘lavar dinheiro’, segundo a Justiça Federal e corroborado pela ex-funcionária. As defesas deles não foram localizadas pela reportagem.
“O Natjo tinha outras associações. Quando eu entrei ele não tinha ainda convênio com o INSS, a gente tinha que levantar os contratos e ajudei nesse processo. Como acontecia? Como ele já tinha associação do Estado e muitas pessoas quem tem aposentadoria do Estado também tinham no INSS, ele pegava o número do benefício. O extrato do INSS de tudo que as pessoas faziam, de todos os descontos, a promessa da associação era que a pessoa se associava, pagava uma taxa de 1% do benefício. Com esse 1% tinha direito a advogados, onde os advogados entravam com ações nos bancos para diminuir parcelas dos empréstimos que os clientes faziam”

PONTO DE PARTIDA
A taxa de 1% era o ponto de partida para a fraude a partir dos contratos nomeados como ‘assistência para compras de medicamentos’. A ex-funcionária diz que havia um grupo específico para pegar os RGs dos clientes e copiar as assinaturas: “quando vinha a auditoria do INSS, tinha que ter quantidade X de contratos, de associados para poder liberar o desconto. Só que, após conseguir a liberação do INSS para o desconto, ele alterava os contratos de desconto de 1% para 3%, 15% até 20%. Alterava as folhas das associações”, explica, se referindo a como Natjo agia.
Todos os detalhes foram pensados para o ‘esquema não furar’. A mulher conta que ‘tiravam até fotos dos associados’, para caso, os aposentados reclamassem no futuro, as associações “terem como provar” que o contato existiu.
Diariamente, a captação acontecia com a ajuda dos corretores de empréstimos que ficavam na porta do INSS, “esses corretores pegavam os clientes do empréstimo e levavam para a associação. O corretor recebia R$ 50 de comissão por cada benefício associado. Tinha corretor que semanalmente recebia de R$ 3 a R$ 5 mil”.
“Ele (Natjo) dizia que se a Polícia chegasse lá, quem ia ser preso era o funcionário. A gente trabalhava com muito medo lá, medo da Polícia chegar a qualquer momento. A gente tinha muitos clientes, a doutora Cecília era presidente de várias associações, às vezes faziam festas, sorteavam liquidificador, conjunto de panelas… É um esquema com muito dinheiro envolvido e eles também lavavam dinheiro repassando aos funcionários”
BENS MILIONÁRIOS E ENRIQUECIMENTO ILÍCITO
O juiz da 11ª Vara da Justiça Federal do Ceará cita, tendo como base as investigações, ‘valores astronômicos’ da organização criminosa formada para “cometer estelionato e lavagem de dinheiro”.
Juntos, os investigados teriam movimentado, pelo menos, R$ 1,3 bilhão a partir do “desconto indevido de mensalidades associativas em aposentadorias e benefícios do INSS sem o conhecimento ou autorização de seus beneficiários”.
No Ceará, foram apreendidos veículos de luxo, como uma Ferrari e um Rollys-Royce, além de dezenas de sapatos avaliadas, cada par, em torno de R$ 40 mil.



O ex-major das Forças Armadas e empresário Natjo de Lima Pinheiro é, segundo a Justiça Federal, “um dos principais gestores das associações investigadas, sendo um dos maiores envolvidos nas transações suspeitas relacionados aos valores astronômicos movimentos para associações, originados de valores obtidos através de milhares de descontos fraudulentos dos benefícios de aposentados pelo INSS, havendo grandes indícios que a operação das associações se dava em conjunto”.
A reportagem apurou que pelo menos três carros de luxo foram recolhidos da garagem da casa do empresário. O imóvel é avaliado em, aproximadamente, R$ 27 milhões, sendo um dos mais caros e luxuosos do Ceará.
VIAGENS PARA DUBAI E PARIS
Cecília também foi presidente de outra associação suspeita de aplicar golpes, a Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (AAPB). De acordo com a Justiça, a advogada levava uma vida de luxo, tendo “três veículos de luxo adquiridos pela operadora do direito nos anos de 2023 e 2024, que anteriormente só ostentava um veículo popular sob sua propriedade”.
Segundo a Polícia Federal, Cecília viajou 33 vezes em menos de um ano, com destinos como Dubai, Paris e Lisboa, e na companhia de outras pessoas ligadas ao esquema. Natjo teria sido um destes acompanhantes em 15 ocasiões, tendo supostamente recebido R$ 400 mil em operações das empresas de Cecília.
Em uma viagem até Dubai, a dupla e outros dois amigos teriam transportado 31 malas, o que para a Polícia é “incomum para uma viagem internacional de 7 dias”.
Sobre a atuação de Cecília enquanto advogada, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Secção Ceará informa que “já foi aberto um procedimento interno de verificação de conduta ética-disciplinar, além de outras providências. Por força da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil), no §2º do art. 72º, o andamento dos processos disciplinares no Tribunal de Ética e Disciplina (TED) é sigiloso, só tendo acesso às suas informações as partes, seus defensores e a autoridade judiciária competente”.
OPERAÇÃO SEM DESCONTO
A Operação Sem Desconto foi deflagrada pela Polícia Federal (PF) e pela Controladoria Geral da União (CGU), no último dia 23 de abril, contra fraudes no INSS. As buscas ocorreram em 13 estados.
Das 11 associações alvos de mandados judiciais, conforme lista do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a reportagem apurou que três instituições têm sedes em Fortaleza – sendo duas no bairro Aldeota e a outra, no Centro – e firmaram Acordo de Cooperação Técnica (ACT) com o INSS entre os anos de 2021 e 2023. Veja lista aqui.
A PF e a CGU dizem que “de toda forma, os aposentados e pensionistas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que identificarem desconto indevido de mensalidade associativa no extrato de pagamentos (contracheque) podem pedir a exclusão do débito de forma automática pelo aplicativo ou site ‘Meu INSS'”.
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