Notícias

Autora de quatro livros, cearense de 89 anos é finalista de prêmio nacional; ‘só fiz até a 5ª série’

A pele negra, marcada pelos caminhos da seca e pelos anos, molda um rosto de Paraipaba, no interior do Ceará, que será lembrado pelo Brasil. Aos 89, a fala de Maria Moura dos Santos, a Maria Toinha, é clara, firme – e ecoa, agora, além do tempo. Autora de quatro livros, ditados para o neto escrever, a mãe de santo concorre a um prêmio nacional.

Por meio de relatos orais transcritos pelo neto, Maria Toinha eterniza memórias da seca e da luta contra o racismo religioso

Escrito por
Theyse Vianatheyse.viana@svm.com.br
10 de Maio de 2025 – 07:00

Cearense Maria Toinha, de 89 anos, segura livros que ditou para o neto escrever
Legenda: Mãe de santo, mestra Maria Toinha segura os livros que registram as próprias memórias de luta por igualdade
Foto: Divulgação/Coletivo Encantarias

A pele negra, marcada pelos caminhos da seca e pelos anos, molda um rosto de Paraipaba, no interior do Ceará, que será lembrado pelo Brasil. Aos 89, a fala de Maria Moura dos Santos, a Maria Toinha, é clara, firme – e ecoa, agora, além do tempo. Autora de quatro livros, ditados para o neto escrever, a mãe de santo concorre a um prêmio nacional.

Maria Toinha é finalista na categoria Educação – Inspiração do Prêmio Sim à Igualdade Racial 2025, promovido pelo Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), e cuja solenidade com os vencedores vai ao ar no dia 25 de maio, na TV Globo, após o Fantástico.

 

Veja também

 

Nascida em maio de 1936, quando mulher estudar era privilégio, a cearense enfrentou tempos e climas áridos. Passou pela seca de 1958, uma das mais severas do Ceará, “com uma criança no braço e uma trouxa na cabeça, andando pelo meio de mundo”, memórias que conta nas obras literárias que deixa como legado.

Entre as tantas vivências em quase 90 anos, porém, vê agora uma nova: o reconhecimento. “Tô emocionada, porque na idade que eu tô nunca tinha passado por isso. Meu pai nunca deixou a gente sair de casa pra trabalhar, mas depois de madura, já tomando de conta das responsabilidades, saí, pé no mundo, pelejando. Tô satisfeita”, resume.

O olhar terno, aliás, contraria o que foi a dureza da vida. “Minha infância foi muito acochada. Meu pai era muito pobre, cuidava da família no cabo da enxada. A gente estudou pouco, estudei só até a 5ª série, mas aprendi muita coisa”, garante.

 

“Mas essa pouca leitura que eu tive me serviu e me serve muito bem.”

 

‘Aprendi a amar’

 

Retrato da mãe de santo cearense Maria Toinha
Legenda: Pele negra e vincos do tempo marcam trajetória da idosa cearense que foi retirante na seca de 1958
Foto: Divulgação/Coletivo Encantarias

 

Maria está entre as finalistas de um prêmio que, independentemente do resultado, já a reconhece como símbolo vivo de luta pela igualdade racial no Ceará. A cearense carrega no sangue e na crença símbolos do que inquieta o racismo: além de afroindígena, Maria Toinha é mãe de santo, umbandista desde os 14 anos de vida. Foi quando aprendeu a amar.

“Quando eu era jovem, eu não tinha amor a ninguém. Não gostava, não tinha pena de ninguém. Depois que a umbanda tomou conta de mim, tudo mudou. Fiquei uma pessoa caridosa, quando via alguém sofrendo ajudava. E ainda sou do mesmo jeito. Aprendi a amar”, diz, com uma simplicidade que incrementa a beleza da fala.

 

Praticar a fé numa religião de matriz africana em pleno interior do Ceará, onde religiões “dominantes” se mostram até nas paredes, foi tarefa árdua. Missão.

 

Tanto Toinha como o neto, Marcos Andrade, 28, relatam que a discriminação e o racismo religioso a perseguiram. E ainda aparecem. “Nem queira saber o que eu passei de sofrimento. Foi uma coisa horrível, todo mundo me empurrava, não tinha quem me quisesse”, inicia Maria.

“Me chamavam disso e daquilo, diziam que era falta de homem, e eu aguentando. Graças a Deus passei por cima. Agora, a gente (umbandista) vive liberta. Tem a libertação. Porque todo mundo confia que (a umbanda) não é meio de vida, é uma obrigação que Jesus Cristo botou no mundo. Vejo gente ainda dizer besteira, deixo pra lá”, relata, serena.

A mãe de santo, que cita a Bíblia em vários momentos, entende a religião como missão que lhe foi dada. Como instrumento de “cura”. “Os mensageiros que a gente trabalha ensinam a gente a ser humano. Porque tem ‘muita’ pessoa que é humana, mas leva vida de ruindade. O que peço aos poderes de Deus, que é o Senhor de tudo, é me dar o entender.”

Da voz às letras

 

Maria Toinha, cearense finalista de prêmio de igualdade racial, autografando livro de sua autoria
Legenda: Maria já “escreveu” quatro livros ditando histórias ao neto
Foto: Divulgação/Coletivo Encantarias

 

A sabedoria evidente em cada sílaba da cearense habita, agora, páginas de quatro livros. Todos foram escritos por Marcos – neto de Maria, escritor, pesquisador e autor de um pedido que, em 2016, mudou o rumo das coisas: “vó, me conte umas histórias da sua vida, do seu passado”.

“Ele tava estudando, fazendo os trabalhos dele da escola. Eu sentei perto dele e ele disse isso. Então comecei a contar. No outro dia, de novo. E de novo. Quando pensei que não, a coisa tava era grande, já”, conta, bem humorada.

 

“Eu me admirei e disse: ‘meu filho, por caridade!’. E ele respondeu ‘vó, era preciso fazer isso, porque quando a senhora for embora, fica seu nome no mundo, na lembrança’”, relembra Maria, com os olhos derramando o afeto pelo “neto que é filho”.

 

O primeiro livro, “A mística dos Encantados”, foi, inclusive, um resgate. A idosa havia perdido a memória após uma pancreatite aguda, e tomou a própria vida de volta nos braços ao narrá-la para o neto. “Ela começou a contar e lembrar de quem ela era, quem conhecia, o que tinha vivenciado. Restituiu o sentido dela pra esse mundo de novo”, aponta o jovem.

Para ele, que é mestre em Sociologia, as obras nasceram de um “encontro entre os saberes dela do terreiro e os da universidade”. “Nessa reunião, ela pode contar suas histórias e não tê-las usurpadas por ninguém. Ela conta, eu transcrevo, construo, e ela é a autora. A narrativa só existe porque a voz dela encaminhou a isso”, orgulha-se o neto.

A parceria, aliás, vem de muito tempo, como lembra a avó-mãe. “Ele deu conta de cuidar de mim com 10 anos de idade. Eu tive cinco AVCs, e graças a Deus ainda tô aqui. Enquanto Deus quiser eu vivo.”

“Saibam viver”

 

Maria Toinha e Marcos Andrade, avó e neto, autores de livros sobre umbanda e memórias no Ceará
Legenda: Maria e Marcos, avó e neto, na Bienal do Livro do Ceará de 2025
Foto: Arquivo pessoal

 

Olhando para o neto e assumindo, com naturalidade, amá-lo e aos irmãos dele “até mais do que aos filhos”, Maria Moura dos Santos, a Maria Toinha, se encabula quando pergunto o que, além de tudo o que está nos livros, queria deixar de legado aos mais jovens.

A retirante, dona de uma trajetória atravessada por pobreza, racismo e intolerância religiosa, prova, então, que a fé e a sabedoria vão sempre à frente no caminho rumo à igualdade e à paz.

“Enquanto tiver mundo, peço à mocidade que tenham paciência, saibam viver e não entrem em todo caminho. O caminho da gente é de espinho e toco, a estrada limpa e livre é a da perdição. Só se vê matar pessoas, tantas mães ficando sem seus filhos, tenho muito medo. Sempre gosto de aconselhar os rapazinhos novos pra conviverem tranquilos. É muito bom a paz e a felicidade.”

Prêmio Sim à Igualdade Racial

A premiação nacional reconhece e homenageia os principais nomes, iniciativas, empresas e organizações que trabalham em prol da igualdade racial no Brasil.

Neste ano, a iniciativa aborda, além da pauta racial, a justiça climática e diálogos direcionados ao Norte e Nordeste brasileiros e às pautas de gênero – tudo sob o prisma do “carisma, que contempla afeto, poder e influência”.

“O Prêmio Sim à Igualdade Racial celebra todos que fazem do carisma uma ferramenta de justiça racial, transformando afeto em ação e a influência que possuem em uma forma de romper as desigualdades. O carisma que celebramos em 2025 é a potência que inspira mudanças”, pontua Tom Mendes, diretor institucional do ID_BR e do prêmio SIR.

Na categoria Educação – Inspiração, a cearense Maria Toinha concorre com a Cacica Maria Valdelice, liderança do povo Tupinambá de Olivença, no estado da Bahia.

Avatar

Carlos Alberto

Oi, eu sou o Carlos Alberto, radialista de Campos Sales-CE e apaixonado por futebol. Tenho qualidades, tenho defeitos (como todo mundo), mas no fim das contas, só quero viver, trabalhar, amar e o resto a gente inventa!

Adcionar comentário

Clique aqui para postar um comentário