
Uma tela na palma da mão. Um clique. Uma visualização em um conteúdo inapropriado. Muitas vezes, esses são os elementos que transformam brincadeiras que começam como curiosidade em tragédia. Os desafios perigosos presentes nas redes sociais têm deixado famílias em estado de alerta — e escancarado o risco ao qual crianças e adolescentes correm todos os dias, dentro de casa, quando estão conectados à internet sem supervisão dos responsáveis.
Desafios com incentivo à inalação de aerossóis, o sufocamento, a automutilação, o consumo de substâncias tóxicas ou ações arriscadas em nome de curtidas e visualizações se espalham entre os jovens como uma corrente silenciosa. Em muitos casos, a brincadeira viral começa sem que os pais sequer saibam. E, às vezes, não dá tempo de intervir.
Na tragédia mais recente ocorrida no Distrito Federal, uma menina de 8 anos foi a vítima da vez. Sarah Raíssa Pereira teria participado do chamado “desafio do desodorante” — e morreu, em abril, após inalar o produto. O episódio, investigado pela Polícia Civil (PCDF), é só um de uma série de casos envolvendo práticas absurdas, mas infelizmente comuns na lógica de engajamento das redes sociais.
Medo e proteção
Entre pais e crianças moradoras da capital federal, o cenário traz medo e também incertezas. Os pequenos tentam navegar em meio a um mar de informações digitais. Enquanto isso, os adultos buscam estratégias para proteger os filhos sem restringi-los excessivamente.
Wesley Francisco, tatuador de 37 anos e morador de Sobradinho, acompanha de perto o que a filha, Raquel Felícia, 11, acessa na internet. A menina tem suas preferências na hora do lazer. “Gosto de jogar no celular. Acho mais divertido”, conta. Entretanto, o pai impõe algumas restrições quanto ao uso de redes.
Na visão dele, influenciadores digitais têm grande parcela de responsabilidade na atenuação dos perigos relacionados ao ambiente digital acessado por crianças. “Quem posta certos conteúdos deveria ser responsabilizado. A criança, obviamente, não tem noção do perigo”, afirma. Francisco ainda ressalta que, além da proibição, é essencial a proximidade: “Se você é amigo do seu filho, vai naturalmente saber o que está acontecendo”.
Moradora de Samambaia, a autônoma Maria Silva, 41, expressa a mesma preocupação. Mãe de três filhos, ela mantém postura rígida quanto ao acesso dos jovens à internet. “Se não souber acessar com cuidado, é muito perigoso, principalmente pela quantidade e variedade dos conteúdos”, avalia. Maria relembra desafios que circularam nas redes, como o da Baleia Azul, associado a riscos de mutilações. “Na época, meus filhos ficaram com muito medo”, relembra.
Raquel Freitas, 15, filha de Maria, não possui aparelho celular próprio. A ausência do dispositivo, segundo ela, é escolha da mãe, baseada em critérios de segurança. “Minha mãe acha mais seguro. Acostumei com o tempo e hoje sinto pouca falta”, conta. Para Maria, a chave está na supervisão ativa e na responsabilidade dos pais. Não dá pra largar o smartphone na mão deles e pensar estar tudo certo”.
Pressão
Por trás desse panorama está uma cultura digital que, por vezes, premia o absurdo. Quanto mais chocante o vídeo, maior e a veiculação. Quanto mais extremo o desafio, mais ele atrai — especialmente jovens em fase de desenvolvimento emocional e sem maturidade para identificar ameaças ou resistir à pressão do grupo.
Professora de psicologia do Centro Universitário de Brasília (Ceub), Izabella Melo destaca que essa combinação é perigosa, pois ocorre num momento sensível que marca a infância e a adolescência. “Crianças e adolescentes estão em processo de formação da identidade, da moralidade, da visão de mundo. E, hoje, boa parte dessas experiências passa pelas redes sociais”, afirma.
O contato virtual entre pares — pessoas da mesma faixa etária ou com interesses parecidos — pode até parecer inofensivo, mas traz consigo perigos graves. “Muitas vezes, ao aceitar participar de desafios perigosos, o jovem está tentando garantir um lugar naquele grupo, evitar a exclusão. O peso desse fator é enorme nessa fase da vida”, explica. Ela ressalta que o cérebro em desenvolvimento ainda não tem todas as habilidades cognitivas formadas. Isso limita a capacidade de avaliar riscos com clareza.
Sobre os caminhos para proteção, Izabella defende um esforço coletivo e estruturado, desde a regulamentação das plataformas até mudanças na vida cotidiana. “É preciso criar condições para que os pais estejam presentes. Isso também envolve políticas públicas que melhorem transporte, trabalho, segurança. Famílias com tempo e estrutura conseguem acompanhar melhor a vida digital dos filhos”, pontua.
Na avaliação do advogado criminalista e do professor de direito Alexandre Carvalho, o Brasil enfrenta um vácuo legislativo no que diz respeito à regulamentação eficaz das redes sociais, especialmente diante dos desafios perigosos que afetam as crianças. “Hoje, não há uma lei específica que responsabilize essas plataformas de forma direta, e os legisladores precisam agir, por meio de projetos ou mesmo de medidas provisórias (contra essas plataformas)”, explica. Segundo ele, criminalmente, as empresas não podem ser punidas, mas há possibilidade de responsabilização civil. Se for identificada quem criou ou divulgou o desafio, essa pessoa física pode responder por incitação ao suicídio. “Falta um caso emblemático solucionado para frear essa onda trágica”, conclui.
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