Especialistas alertam para perigos da banalização de termos e sintomas, mas reforçam necessidade de investigar quadros

“Marquei 4 nessa lista e descobri que tenho TDAH.” “Se faz isso, você pode ser autista.” Entre posts, memes e comentários, duas condições de saúde importantes têm pautado conteúdos nas redes sociais, gerando uma onda de autodiagnósticos que preocupa especialistas: o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e o autismo.
O tema foi um dos assuntos tratados por psiquiatras, psicólogos e neurocientistas em palestras no Brain 2025 – Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções, sediado pela primeira vez no Nordeste, em Fortaleza, no Centro de Eventos do Ceará, entre 18 e 21 de junho.
O Diário do Nordeste conversou com profissionais de saúde do Brasil e do exterior para entender quais os riscos de se “autodiagnosticar” com esses transtornos, como as redes sociais interferem nisso, quais os principais sintomas e o que fazer (e não fazer) para identificá-los e tratá-los.
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‘Foi mal, é meu TDAH’
Um dos comportamentos comuns nas redes sociais e no autodiagnóstico de adultos é o “check-list” de sintomas, que pode atribuir a transtornos características meramente comportamentais, como alertou Paulo Mattos, psiquiatra e professor de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante palestra no congresso.
“A pessoa pode ser desatenta e esquecida por inúmeros fatores que não são TDAH. Muitos diagnósticos são feitos só com aplicação de testes. É preciso raciocínio clínico”, pontuou o pesquisador, reforçando a necessidade de capacitação dos profissionais de saúde para lidar com a questão.
O mesmo deve ser observado em relação ao Transtorno do Espectro Autista (TEA), como avaliou Catherine Lord, psicóloga e pesquisadora estadunidense, em entrevista exclusiva ao Diário do Nordeste.
“Acabei de ouvir alguém dizer: ‘minha filha não gosta de protetor solar, então acho que ela é autista’. Metade do mundo não gosta de protetor solar. Ampliamos muito o diagnóstico, e esse acesso, em geral, é muito bom – mas precisamos observar os limites”, destaca.
“Todos nós temos momentos em apresentamos algum sinal de uma pessoa autista. Todos temos direito de buscar informações, mas acho que, especialmente no TikTok, não há filtragem: há pessoas que não são autistas ‘vendendo’ coisas. É difícil”, lamenta Catherine.
Philip Shaw, psiquiatra, professor e pesquisador do Reino Unido especialista em TDAH e transtornos relacionados, concorda que “todos nós podemos ter sintomas de TDAH, como distração”, mas alerta que é preciso observar os possíveis impactos deles na vida social, laboral e familiar. Chegar a um laudo, ele adiciona, “não é tarefa simples”.
Assim, em relação ao autodiagnóstico e à linha tênue entre características comuns ao ser humano e a possibilidade de um transtorno, o médico destaca que buscar ajuda profissional é indispensável.

“Talvez você seja distraído, tenha uma ansiedade, mas isso não vai implicar na sua vida. Você está bem. Sempre vai ser necessária uma boa conversa com o médico”, frisa.
De qualquer forma, reforça Philip, o profissional de saúde precisa dar atenção e validar as queixas de quem busca auxílio para investigar possíveis transtornos, como TEA e TDAH – ainda que tenham sido despertadas “por um vídeo de TikTok”.
“Se alguém chega à clínica e diz ‘eu tenho TDAH’ porque viu nas redes sociais, no TikTok, o importante é levar esses sintomas a sério e investigá-los para saber se são válidos. Em um adulto, é importante checar o histórico desde a infância, falar com os pais. É um desafio de neurodesenvolvimento ao longo da vida”, sublinha o psiquiatra.
Como diferenciar TEA e TDAH
Identificar e diferenciar transtornos como TEA e TDAH é um desafio com que os próprios profissionais de saúde lidam diariamente, como pontuou em palestra a neuropsicóloga Ana Olívia da Fonseca Montebelo, pesquisadora do Laboratório de Neurociência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
“Os sintomas se confundem, não são específicos de cada transtorno. Portanto, temos grandes chances de haver sobreposição de diagnósticos. E ainda há histórias que se embaralham: muitas vezes há divergência entre o relato da pessoa avaliada e a história que o familiar apresenta”, observa.
Entre os sintomas comuns entre transtornos de humor, ansiedade, uso de substâncias e TDAH, por exemplo, estão:
- desatenção;
- inquietação;
- desregulação emocional;
- impulsividade;
- e disfunção executiva (capacidade de gerenciar pensamentos, emoções e tarefas).
dos adultos com TDAH, em média, têm pelo menos mais um transtorno concomitante, como depressão ou ansiedade, de acordo com estudo da revista médica Psiquiatria e Neurociências Clínicas, dos EUA.
Assim, Olívia reforça, a avaliação para chegar a um diagnóstico correto passa por diversas e extensas etapas, como:
- História clínica minuciosa;
- Critérios diagnósticos;
- Avaliação neuropsicológica criteriosa;
- Instrumentos com validade e confiabilidade;
- Raciocínio clínico (análise e interpretação do profissional da saúde sobre o cenário).
Assim como Philip, a neuropsicóloga reforça a importância de o profissional de saúde considerar as queixas apresentadas pelo paciente e não ignorar a possibilidade de existência dos transtornos – seja TEA, seja TDAH.
“A falta de conscientização entre os clínicos, os estigmas, a automedicação, a mudança dos sintomas com a idade e a sobreposição de sintomas estão entre os fatores que dificultam o diagnóstico em adultos”, lista a pesquisadora e palestrante.
Para a psicóloga Catherine Lord, manter o assunto em pauta vai além do “boom” de diagnósticos: indica a possibilidade de autoconhecimento e de um adulto buscar ajuda profissional.
“Nos diagnósticos tardios, na maioria das vezes, a própria pessoa diz: ‘tem algo diferente em mim, como posso obter ajuda ou entender melhor sobre mim?’. É muito diferente daqueles em que uma família traz uma criança pequena para nós e pergunta: ‘o que está acontecendo com meu filho?’”, frisa.
Riscos do “psicólogo ChatGPT”

Outro comportamento mencionado como preocupante por diversos especialistas em neurociência e saúde mental é o uso de ferramentas de inteligência artificial, a exemplo do ChatGPT, como “serviços de psicologia” ou meios de “consulta” para diagnóstico.
Katie Almondes, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP), destaca que “cada vez mais têm chegado avaliações pelo ChatGPT”, observando que “há um fascínio” das pessoas por essas ferramentas.
“Não tem como uma pessoa leiga, da sociedade, que não tem uma formação adequada, conseguir fazer um diagnóstico dessa natureza. Nem o ChatGPT. Como uma inteligência dessa vai gerar uma avaliação e dizer ‘você tem um transtorno assim’? Impossível”, sentencia a pesquisadora, em entrevista ao Diário do Nordeste.
Katie alerta para não confiabilidade das informações fornecidas por IAs desse tipo, e relata um episódio em que “brincou” com o ChatGPT ao pedir uma informação com referência bibliográfica. “Pesquisei nas principais bases de dados acadêmicos e não encontrei o artigo que ele indicou”, conta.
“Essas perguntas (comandos) não traduzem a sua demanda clínica, seu perfil. (O conteúdo gerado) não têm validade preditiva, científica. São baseadas em amostras muito específicas, geralmente norteamericanas”, avalia Katie.
A psicóloga e pesquisadora observa, porém, que “a despeito do grande fluxo de diagnósticos inadequados, disfuncionais, esses recursos podem servir para alertar os indivíduos de que eles devem procurar um profissional especializado, com conhecimento técnico”.
“Diagnóstico promove autoaceitação”
Se de um lado pode haver prejuízos nas tentativas de um adulto se “encaixar” em um transtorno sem o devido acompanhamento profissional, do outro um diagnóstico correto e responsável pode promover qualidade de vida, como destacou Cristiana Rocca, psicóloga e doutora em Ciências, em palestra no Brain.
“O diagnóstico promove o autoconhecimento, o paciente deixa de achar que o que tem são questões de caráter. Promove autoaceitação, motivação e engajamento no tratamento, e ele vai conseguir diferenciar as dificuldades e potenciais que tem”, declarou a pesquisadora.
Para isso, os sintomas e o comportamento, ela ilustra, são como o enredo de um filme – e o profissional deve buscar os bastidores. “A investigação psicológica busca os bastidores, mostra quais as dificuldades que o paciente enfrenta na vida. A partir delas, mapeamos como ele funciona na vida prática”, finaliza.
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