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Por que os produtos ficam ‘ultrapassados’ tão rápido? Entenda a cultura do upgrade

Consumir pode parecer um ato simples do cotidiano moderno, mas envolve uma série de questões culturais, econômicas e emocionais, como medos e a busca pela aceitação social. Foi justamente essa dinâmica complexa que levou muitas pessoas a correrem às docerias em busca do tal 'morango do amor’.

Escrito por
Bruna Damascenobruna.damasceno@svm.com.br
30 de Julho de 2025 – 15:38

Legenda: A troca constante de celulares é o principal exemplo dessa cultura
Foto: Shutterstock

Consumir pode parecer um ato simples do cotidiano moderno, mas envolve uma série de questões culturais, econômicas e emocionais, como medos e a busca pela aceitação social. Foi justamente essa dinâmica complexa que levou muitas pessoas a correrem às docerias em busca do tal ‘morango do amor’.

Esse entendimento sobre a fome da natureza humana por novidades é explorado pelo marketing de forma muito mais sofisticada do que o simples incentivo à compra de uma fruta gourmet. Um exemplo disso é o fenômeno chamado “cultura da atualização” (upgrade culture), um comportamento social motivado por estratégias mercadológicas muito bem elaboradas que criam uma necessidade construída. Mas como isso ocorre?

 

A cultura da atualização converte o desejo pelo novo em uma demanda aparente. Exemplos comuns incluem a troca do celular por um modelo mais recente, devido a melhorias mínimas na câmera ou no processador, ou a substituição do carro a cada dois anos por alterações sutis no design.

 

Trata-se, portanto, de uma escolha voluntária do consumidor, ainda que influenciada por pressões sociais. Para o professor Leonardo Oliveira, do Departamento de Tecnologia do Design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a cultura do upgrade nos leva a refletir profundamente sobre os princípios de consumo impostos à sociedade contemporânea.

“Essa cultura ou paradigma surge como ação provocadora para a construção de um fenômeno social e de mercado no qual os consumidores são constantemente incentivados a substituir produtos perfeitamente funcionais por novas versões deles mesmos, muitas vezes com quase nenhum ganho significativo em performance”, destaca.

Ele explica que, nesse caso, a performance se destaca porque outros atributos importantes do produto, como a extensibilidade e a durabilidade, já são limitados pelos princípios da obsolescência programada.

Quais são os exemplos da Upgrade Culture no dia a dia?

Conforme o professor, as atualizações dos smartphones são os melhores exemplos da atuação da cultura do upgrade, pelos seguintes motivos:

  • Possuem um verdadeiro ecossistema com inúmeros outros produtos satélites, todos com as mesmas aplicações da upgrade culture;
  • Ciclos de lançamentos acelerados com mudanças mínimas;
  • Baterias não substituíveis;
  • Atualizações de softwares incompatíveis com hardware anterior;
  • Fragilidade física planejada;
  • Percepção de design e funcionalidade (ex.: telas dobráveis);
  • Percepção forçada de menor preço (ex.: trade-in com o produto anterior).

De acordo com o professor, as características da upgrade culture observadas nos smartphones também podem ser estendidas e herdadas por outros produtos, como nos seguintes casos:

  • A interoperabilidade forçada, em que dispositivos novos só funcionam plenamente quando integrados a outros da mesma marca e geração, como no caso do recurso “Find My”, da Apple, que exige um iPhone recente para rastrear AirTags;
  • O efeito dominó, quando a troca do smartphone leva à atualização de acessórios;
  • As franquias de videogames, em que comunidades ativas nem sempre são integradas imediatamente à nova versão do jogo recém-lançado;
  • Os games e softwares atualizados anualmente, como EA Sports FC ou Call of Duty, mesmo quando as mudanças entre versões são mínimas;
  • Os automóveis, com mudanças estéticas sutis (os chamados facelifts), adição de novos recursos de mídia ou simples atualizações de software, todas planejadas para estimular continuamente o desejo pelo novo.

Como surgiu a cultura da atualização e quais são seus impactos

Segundo Oliveira, esse movimento iniciou entre as décadas de 1980 e 1990, impulsionado pela revolução microeletrônica, pela popularização dos computadores pessoais, pela ascensão do Vale do Silício, pela expansão do mercado eletrônico liderado por Japão e Coreia do Sul e pelas transformações da quarta fase da globalização.

Ele acrescenta que a “globalização trouxe como principal característica o acúmulo de todos os requerimentos que validaram a intenção de uma reformulação comportamental psicológica da sociedade contemporânea, como avanços tecnológicos de alcance mundial imediato, economia global interconectada e abertura de mercados, neoliberalismo e desregulamentação, novas relações de trabalho, rentismo e acumulação de riquezas”.

 

“Os mercados já haviam feito suas escolhas por esses atributos. Seria necessário convencer as pessoas e seus grupos de que esses atributos também seriam bons para elas. Contudo, a intensificação da globalização trouxe consequências como o aumento das desigualdades sociais e impactos ambientais, como a poluição e as mudanças climáticas”, analisa.
Leonardo Oliveira

Professor do Departamento de Tecnologia do Design da UFMG

 

Qual é a diferença entre Upgrade Culture e obsolescência programada?

O professor Oliveira explica que a obsolescência programada foi planejada muito antes da intenção por trás da upgrade culture surgir.

“Basicamente, temos a obsolescência programada com foco no produto, com o defeito sendo definido durante o projeto, fazendo com que ele se torne inutilizável, não expansível, com diminuição de performance ou sem possibilidade de manutenção”, detalha.

Já a Upgrade Culture, explica ele, foca no comportamento do consumidor, atuando de forma psicológica para construir laços de pertencimento entre pessoa e produto. Ou seja, o produto antigo ainda funciona, mas a simples apresentação de uma suposta evolução já provoca a intenção de substituição.

 

“O principal comportamento associado a essa tendência é conhecido pela sigla FOMO, que significa Fear of Missing Out. Em uma tradução formal, trata-se do ‘medo de perder a atualização’, fenômeno que provoca filas imensas nas portas das lojas nos dias de lançamento de uma nova versão de um produto e gera cenas dignas de um ritual midiático bizarro”, avalia.
Leonardo Oliveira

Professor do Departamento de Tecnologia do Design da UFMG

 

Como identificar a cultura da atualização infinita

Segundo o professor, a cultura de atualização é um fenômeno sociocultural composto por estruturas planejadas, que são:

  • Marketing agressivo: campanhas de marketing emocional associadas à modernidade e ao pertencimento social;
  • Pressão social: doutrinação sobre a mudança de status associada ao novo;
  • Inovação incremental: pequenas melhorias apresentadas como essenciais, disponibilizadas em lançamentos escalares controlados de produtos;
  • Patrocínio de influenciadores: uso da rede mundial para publicidade direcionada;
  • Distinção intencional e direcionada de arranjos sociais: promoção da criação de grupos de afinidade na rede mundial e seus produtos específicos.

O consumo consciente pode te salvar dessas armadilhas

Para o professor Oliveira, o primeiro passo é adotar a prática do consumo consciente, questionando a real necessidade de trocar o produto e priorizando a possibilidade de manutenção em vez da simples preferência pela marca desejada.

 

“Não é um processo fácil; na verdade, é bastante complexo, pois se sustenta em uma tríade forte: marketing emocional, obsolescência programada e interoperabilidade forçada. Seus efeitos extrapolam o digital, ecoando em abordagens que alertam que essa Upgrade Culture traz consigo o custo invisível do Human Downgrade, em tradução formal, desvalorização humana (Tristan Harris)”, explica.
Leonardo Oliveira

Professor do Departamento de Tecnologia do Design da UFMG

 

Contudo, ele pondera que algumas identificações capazes de orientar um enfrentamento podem ser listadas:

  • Perceber as periodicidades dos ciclos de lançamentos;
  • Perceber o marketing emocional embutido nas campanhas;
  • Resistir à pressão de influenciadores;
  • Buscar mais conhecimento técnico que permita analisar as novas performances listadas nas tabelas de comparação de especificações;
  • Evitar atualizar desnecessariamente os softwares embarcados nos produtos; avalie se a atualização é realmente necessária (a indicação acima também se aplica a este tópico).

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Carlos Alberto

Oi, eu sou o Carlos Alberto, radialista de Campos Sales-CE e apaixonado por futebol. Tenho qualidades, tenho defeitos (como todo mundo), mas no fim das contas, só quero viver, trabalhar, amar e o resto a gente inventa!

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