
Consumir pode parecer um ato simples do cotidiano moderno, mas envolve uma série de questões culturais, econômicas e emocionais, como medos e a busca pela aceitação social. Foi justamente essa dinâmica complexa que levou muitas pessoas a correrem às docerias em busca do tal ‘morango do amor’.
Esse entendimento sobre a fome da natureza humana por novidades é explorado pelo marketing de forma muito mais sofisticada do que o simples incentivo à compra de uma fruta gourmet. Um exemplo disso é o fenômeno chamado “cultura da atualização” (upgrade culture), um comportamento social motivado por estratégias mercadológicas muito bem elaboradas que criam uma necessidade construída. Mas como isso ocorre?
A cultura da atualização converte o desejo pelo novo em uma demanda aparente. Exemplos comuns incluem a troca do celular por um modelo mais recente, devido a melhorias mínimas na câmera ou no processador, ou a substituição do carro a cada dois anos por alterações sutis no design.
Trata-se, portanto, de uma escolha voluntária do consumidor, ainda que influenciada por pressões sociais. Para o professor Leonardo Oliveira, do Departamento de Tecnologia do Design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a cultura do upgrade nos leva a refletir profundamente sobre os princípios de consumo impostos à sociedade contemporânea.
“Essa cultura ou paradigma surge como ação provocadora para a construção de um fenômeno social e de mercado no qual os consumidores são constantemente incentivados a substituir produtos perfeitamente funcionais por novas versões deles mesmos, muitas vezes com quase nenhum ganho significativo em performance”, destaca.
Ele explica que, nesse caso, a performance se destaca porque outros atributos importantes do produto, como a extensibilidade e a durabilidade, já são limitados pelos princípios da obsolescência programada.
Quais são os exemplos da Upgrade Culture no dia a dia?
Conforme o professor, as atualizações dos smartphones são os melhores exemplos da atuação da cultura do upgrade, pelos seguintes motivos:
- Possuem um verdadeiro ecossistema com inúmeros outros produtos satélites, todos com as mesmas aplicações da upgrade culture;
- Ciclos de lançamentos acelerados com mudanças mínimas;
- Baterias não substituíveis;
- Atualizações de softwares incompatíveis com hardware anterior;
- Fragilidade física planejada;
- Percepção de design e funcionalidade (ex.: telas dobráveis);
- Percepção forçada de menor preço (ex.: trade-in com o produto anterior).
De acordo com o professor, as características da upgrade culture observadas nos smartphones também podem ser estendidas e herdadas por outros produtos, como nos seguintes casos:
- A interoperabilidade forçada, em que dispositivos novos só funcionam plenamente quando integrados a outros da mesma marca e geração, como no caso do recurso “Find My”, da Apple, que exige um iPhone recente para rastrear AirTags;
- O efeito dominó, quando a troca do smartphone leva à atualização de acessórios;
- As franquias de videogames, em que comunidades ativas nem sempre são integradas imediatamente à nova versão do jogo recém-lançado;
- Os games e softwares atualizados anualmente, como EA Sports FC ou Call of Duty, mesmo quando as mudanças entre versões são mínimas;
- Os automóveis, com mudanças estéticas sutis (os chamados facelifts), adição de novos recursos de mídia ou simples atualizações de software, todas planejadas para estimular continuamente o desejo pelo novo.
Como surgiu a cultura da atualização e quais são seus impactos
Segundo Oliveira, esse movimento iniciou entre as décadas de 1980 e 1990, impulsionado pela revolução microeletrônica, pela popularização dos computadores pessoais, pela ascensão do Vale do Silício, pela expansão do mercado eletrônico liderado por Japão e Coreia do Sul e pelas transformações da quarta fase da globalização.
Ele acrescenta que a “globalização trouxe como principal característica o acúmulo de todos os requerimentos que validaram a intenção de uma reformulação comportamental psicológica da sociedade contemporânea, como avanços tecnológicos de alcance mundial imediato, economia global interconectada e abertura de mercados, neoliberalismo e desregulamentação, novas relações de trabalho, rentismo e acumulação de riquezas”.
“Os mercados já haviam feito suas escolhas por esses atributos. Seria necessário convencer as pessoas e seus grupos de que esses atributos também seriam bons para elas. Contudo, a intensificação da globalização trouxe consequências como o aumento das desigualdades sociais e impactos ambientais, como a poluição e as mudanças climáticas”, analisa.
Qual é a diferença entre Upgrade Culture e obsolescência programada?
O professor Oliveira explica que a obsolescência programada foi planejada muito antes da intenção por trás da upgrade culture surgir.
“Basicamente, temos a obsolescência programada com foco no produto, com o defeito sendo definido durante o projeto, fazendo com que ele se torne inutilizável, não expansível, com diminuição de performance ou sem possibilidade de manutenção”, detalha.
Já a Upgrade Culture, explica ele, foca no comportamento do consumidor, atuando de forma psicológica para construir laços de pertencimento entre pessoa e produto. Ou seja, o produto antigo ainda funciona, mas a simples apresentação de uma suposta evolução já provoca a intenção de substituição.
“O principal comportamento associado a essa tendência é conhecido pela sigla FOMO, que significa Fear of Missing Out. Em uma tradução formal, trata-se do ‘medo de perder a atualização’, fenômeno que provoca filas imensas nas portas das lojas nos dias de lançamento de uma nova versão de um produto e gera cenas dignas de um ritual midiático bizarro”, avalia.
Como identificar a cultura da atualização infinita
Segundo o professor, a cultura de atualização é um fenômeno sociocultural composto por estruturas planejadas, que são:
- Marketing agressivo: campanhas de marketing emocional associadas à modernidade e ao pertencimento social;
- Pressão social: doutrinação sobre a mudança de status associada ao novo;
- Inovação incremental: pequenas melhorias apresentadas como essenciais, disponibilizadas em lançamentos escalares controlados de produtos;
- Patrocínio de influenciadores: uso da rede mundial para publicidade direcionada;
- Distinção intencional e direcionada de arranjos sociais: promoção da criação de grupos de afinidade na rede mundial e seus produtos específicos.
O consumo consciente pode te salvar dessas armadilhas
Para o professor Oliveira, o primeiro passo é adotar a prática do consumo consciente, questionando a real necessidade de trocar o produto e priorizando a possibilidade de manutenção em vez da simples preferência pela marca desejada.
“Não é um processo fácil; na verdade, é bastante complexo, pois se sustenta em uma tríade forte: marketing emocional, obsolescência programada e interoperabilidade forçada. Seus efeitos extrapolam o digital, ecoando em abordagens que alertam que essa Upgrade Culture traz consigo o custo invisível do Human Downgrade, em tradução formal, desvalorização humana (Tristan Harris)”, explica.
Contudo, ele pondera que algumas identificações capazes de orientar um enfrentamento podem ser listadas:
- Perceber as periodicidades dos ciclos de lançamentos;
- Perceber o marketing emocional embutido nas campanhas;
- Resistir à pressão de influenciadores;
- Buscar mais conhecimento técnico que permita analisar as novas performances listadas nas tabelas de comparação de especificações;
- Evitar atualizar desnecessariamente os softwares embarcados nos produtos; avalie se a atualização é realmente necessária (a indicação acima também se aplica a este tópico).
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