Entre outras medidas, o Programa Agora Tem Especialistas possibilita que as operadoras convertam débitos em procedimentos especializados para usuários da rede pública

Ao longo dos últimos cinco anos, entre 2020 e 2024, os planos de saúde acumularam uma dívida de R$ 106,9 milhões com a União devido a atendimentos prestados por unidades de saúde públicas do Ceará a beneficiários. Esse valor diz respeito àqueles casos em que os clientes das operadoras estavam cobertos pelo contrato com o plano de saúde e, por isso, o Sistema Único de Saúde (SUS) deveria ter sido ressarcido.
Ao todo, nesse período, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) identificou que o valor a ser pago era de R$ 158,2 milhões. Mas, desse montante, apenas R$ 51,3 milhões foram pagos ou estão em parcelamento, o que gera um Índice de Efetivo Pagamento de 32,43%. É a 5ª menor taxa em todo o Brasil.
- Amazonas (16,18%)
- Pernambuco (27,01%)
- Rio Grande do Norte (28,71%)
- Alagoas (32,21%)
- Ceará (32,43%)
As informações são da 18ª edição do Boletim Informativo da ANS sobre “Utilização do Sistema Único de Saúde por Beneficiários de Planos de Saúde e Ressarcimento ao SUS”.
É esse tipo de dívida que o Ministério da Saúde quer que os planos privados quitem por meio da oferta de serviços especializados a usuários do SUS, no componente Ressarcimento do Programa Agora Tem Especialistas.
Na segunda-feira, 28 de julho, a Pasta afirmou que a meta inicial é que R$ 750 milhões em dívidas de ressarcimento ao SUS sejam convertidas em consultas, exames e cirurgias em 2025.
Porém, como o valor ressarcido ao SUS é integralmente destinado ao Fundo Nacional de Saúde (FNS), não é possível associar diretamente uma quantia em dívida paga à ampliação de oferta de serviços em determinado estado ou município.
O programa determina tetos por região dos valores máximos anuais para a prestação de serviços e, para isso, considera população, estoque de dívida e capacidade dos planos de saúde para atender à demanda. Para o Nordeste, a proporção foi definida em 24%.
Essa troca vai priorizar as seis áreas mais carentes de serviços especializados — oncologia, oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, cardiologia e ginecologia — e considerar a demanda de estados e municípios. Só no Ceará, as filas de espera nessas áreas somam mais de 74,2 mil pessoas aguardando consultas, conforme adiantou o Diário do Nordeste segunda-feira (4).
- Oftalmologia: 21 mil
- Ortopedia: 21 mil
- Ginecologia: cerca de 16 mil
- Otorrinolaringologia: 14 mil
- Cardiologia: 2 mil
- Oncologia: 200
“Temos muita dificuldade de recuperar essas dívidas, de ela voltar para o Fundo Nacional de Saúde. E, mesmo quando elas voltam, não significam mais atendimento, porque você tem outras regras de limitação da expansão dos investimentos na área da saúde. Nós estamos transformando essas dívidas em mais cirurgias, mais exames, mais consultas especializadas e menos tempo de espera”, afirmou o ministro da saúde, Alexandre Padilha, em coletiva de imprensa.
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Ainda na coletiva de imprensa para a divulgação do componente Ressarcimento, o ministro destacou que apenas 10% dos médicos especialistas estão no Sistema Único de Saúde. “30% estão nos hospitais privados, nas clínicas privadas, nos serviços privados, e boa parte deles são operados por planos de saúde”, complementou Padilha, afirmando que existem, ainda, aqueles que atuam nos dois serviços.
O ministro ainda afirmou que há regiões do País onde a oferta de equipamentos para diagnóstico em imagem no setor privado chega a ser três vezes maior que a do SUS. “A gente vai buscando ampliar cada vez mais a capacidade do setor público em atender, fazer exames e cirurgias. Mas se você não for onde estão os especialistas, os equipamentos, as estruturas de diagnóstico, você não vai reduzir o tempo de espera na velocidade que a gente precisa”, destacou.

Entenda as dívidas de ressarcimento ao SUS
São muitos os motivos que levam beneficiários de planos de saúde para atendimento em unidades públicas. Uma razão frequente, segundo o médico sanitarista e gestor em saúde Álvaro Madeira Neto, são casos de urgência e emergência. “Em casos de acidente ou mal súbito, o paciente normalmente é levado ao hospital público mais próximo. E, independentemente de ter plano ou não, ele será devidamente atendido”, afirma.
Outro caso comum é a busca pela rede pública para realizar procedimentos de alta complexidade. “A rede privada do plano, às vezes, não tem aquela disponibilidade imediata ou aquela capacidade instalada, e o beneficiário vai acabar tratando determinada enfermidade em centros de referências do SUS”. complementa.
A médica sanitarista Ligia Bahia, professora titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acrescenta a negativa e a postergação do atendimento, por parte das operadoras, além da demora para realizar os procedimentos. “As operadoras funcionam sob uma lógica de autorizações e negações que dependem de condições muitas vezes ignoradas pelos clientes, como acesso condicionado ao tipo de plano”, afirma.
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Nas unidades públicas de saúde do Ceará, entre 2019 e 2024, dos mais de 66,6 mil atendimentos a beneficiários de planos privados no SUS, cerca de 36% foram referentes a Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) e os outros 64%, a Autorizações e Procedimentos de Alta Complexidade do SUS (APAC). Os dados também estão disponíveis no boletim da Agência Nacional de Saúde Suplementar.
“Os dados da ANS sobre esses ressarcimentos indicam, de fato, que os procedimentos que mais originam as cobranças dos planos incluem hemodiálise, tratamento de infecções graves, cirurgias múltiplas, tratamento de doenças infecciosas severas, acompanhamento pós-transplante de órgãos, terapias oncológicas, até mesmo, em alguns, casos parto”, complementa o médico.
Quando a Agência Nacional de Saúde Suplementar identifica que um atendimento a beneficiário de plano de saúde foi realizado no SUS, a operadora é notificada para ressarcir o sistema público ou apresentar defesa. Elas podem recorrer em duas instâncias para provar que o ressarcimento não é devido.
Historicamente, segundo Álvaro Madeira Neto, essas são dívidas “muito difíceis” de serem recuperadas. Há operadoras que têm resistência em pagar os valores identificados, e isso é percebido por meio de contestações administrativas e judiciais dessas cobranças.
“Todo esse trâmite acaba levando a uma dívida que vai acumulando valores expressivos ao longo do tempo, já que muitas operadoras contestam, muitas operadoras atrasam esses reembolsos”, afirma.
O Ministério da Saúde estima que a dívida dos planos de saúde, em todo o País, é de R$ 1,3 bi. Esses débitos, segundo o médico sanitarista, representam recursos “fundamentais” que deixam de ingressar no financiamento público da saúde.
O ressarcimento ao SUS se tornou uma fonte considerável de recursos adicionais para a saúde. Em 2022, temos quase R$ 1 bilhão efetivamente repassados pelas operadoras ao Fundo Nacional de Saúde. Imagina se esses valores não (são) pagos — por atraso, contestação ou inadimplência —, o SUS deixa de receber um reforço financeiro fundamental para sua atuação.
Para Ligia Bahia, a dívida não afeta diretamente os usuários, mas “sinaliza que os governos são complacentes, ‘fecham os olhos’”. “Se houvesse pagamento haveria mais recursos para o Fundo Nacional de Saúde”, afirma.
A proposta de que as operadoras troquem dívidas por atendimentos especializados, para o sanitarista, representa “uma inovação importante” e afirma que vê a medida “com bons olhos”. “Me parece uma uma direção mais racional para recuperar esses valores”, diz.
Para a professora da UFRJ, a proposta parece “uma boa iniciativa, mas de difícil operacionalidade”. “Afinal de contas, se essas operadoras não atenderam seus próprios clientes, irão ampliar acesso para cidadãos sem planos?”, questiona. Para ser viável, ela destaca a necessidade de regras para regular preços, quantidade e qualidade de atividades e insumos.
Em um comunicado publicado no dia 20 de junho, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) destacou a necessidade de o Governo Federal construir mecanismos sólidos para prevenir que o atendimento a pacientes do SUS seja de pior qualidade que aqueles ofertados aos pacientes privados.
Ligia Bahia destaca o posicionamento como “super pertinente” e Álvaro Madeira Neto aponta que essa é “uma preocupação extremamente legítima”. “Atender pacientes do SUS pela porta dos fundos e com condições precárias é um risco para a saúde pública”, enfatiza a professora.
“Deve existir fiscalização, monitoramento e avaliação dos indicadores para que esses riscos sejam minimizados. Sempre temos a preocupação de que, por tentar otimizar custos, haja um sofrimento maior para quem de fato precisa”, complementa o médico.
Para que essa troca de dívida por atendimento funcione de maneira adequada, preservando a equidade no acesso à saúde, Álvaro Madeira Neto destaca que é preciso criar um arcabouço robusto de regulação e controle.
Esse mecanismo deve incluir critérios de transparência de seleção de pacientes, metas claras de volume de atendimento, acompanhamento financeiro e um pilar de garantia de qualidade e integralidade do cuidado. “É fundamental que a gente dê esse passo, mas que isso seja, de fato, bem monitorado”, aponta.

Como funciona a cobrança de ressarcimento
- O processo começa com o cruzamento dos dados do Departamento de Informática do SUS (Datasus) sobre atendimentos da rede pública com as informações do Sistema de Informações de Beneficiários (SIB) dos planos de saúde;
- Os atendimentos identificação como aptos a serem cobrados são encaminhados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para as operadoras dos planos de saúde, para que elas efetuem o pagamento ou apresentem defesa;
- Os planos de saúde podem recorrer em duas instâncias. Inicialmente, é protocolada uma impugnação e, caso haja o indeferimento das alegações, é possível apresentar recurso;
- Se a solicitação for indeferida, a operadora deve pagar os valores apurados pela Agência;
- Em caso de inadimplência, as operadoras são inscritas em dívida ativa e no Cadastro Informativo de Créditos não quitados do Setor Público federal (Cadin), assim como ficam sujeitas à cobrança judicial;
- Os valores ressarcidos, por sua vez, são encaminhados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS) para serem reaplicados em programas prioritários do Ministério da Saúde.
“Desta forma, o ressarcimento pode ser visto como um importante mecanismo de regulação, que possibilita identificar como as operadoras estão procedendo em relação ao cumprimento dos contratos dos beneficiários e se possuem uma rede de atendimento adequada”, explica a ANS, em publicação sobre os procedimentos de cobrança.
Como vai funcionar a troca de dívidas por serviços especializados
Para participar dessa iniciativa, a operadora de plano de saúde deve aderir ao programa por meio de edital, apresentar capacidade técnica e operacional para ofertar atendimentos, estar regular com o envio das informações periódicas à ANS e não se encontrar em processo de liquidação (sendo encerrada judicial ou administrativamente) ou impedida de contratar com a Administração Pública.
Os planos de saúde também devem indicar os débitos de ressarcimento e apresentar proposta de oferta que atende demandas locais de saúde.
Dúvida estimada de ressarcimento ao SUS dos planos de saúde no Brasil
Após a adesão ser aprovada, os valores a serem convertidos em atendimentos são negociados com a ANS ou com a Procuradoria-Geral Federal (PGF), em caso de dívidas ativas. Depois disso, um rol de serviços ofertados será disponibilizado ao SUS conforme a demanda existente na regulação local e regional.
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Com base em uma tabela própria, o programa vai remunerar a operadora após a conclusão do conjunto de atendimentos previstos nos combos de cuidados — as Ofertas de Cuidados Integrados (OCIs), pacote de serviços que inclui consultas, exames e tratamentos, inclusive cirurgias —, que devem ser realizados em prazos definidos.
Os serviços prestados pelos planos de saúde vão gerar o Certificado de Obrigação de Ressarcimento (COR), necessário para abater a dívida com o SUS. Para isso, o programa estabelece uma produção mínima de R$ 100 mil por mês, para evitar pulverização dos serviços. Em regiões com menos instituições e grande demanda, o valor mínimo é de R$ 50 mil mensal.
A Portaria nº 7.702, de 28 de julho, prevê monitoramento conjunto entre Ministério da Saúde, ANS, entes federativos participantes e grupo condutor tripartite de implementação e monitoramento. Em caso de descumprimentos — com inexecução dos serviços acordados ou execução inferior a 90% — as operadoras poderão ser multadas e até excluídas do Programa.
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