Thatiany Nascimento07:00 – 27 de Agosto de 2025
Quando terminou o ensino médio e, em seguida, soube que havia passado no curso de Odontologia, foi uma festa. No Sítio Picadas, localizado na zona rural de Granjeiro – cidade com a menor população no Ceará, como 4,8 mil pessoas no total – a notícia correu boca a boca. Se na sede da cidade “todo mundo se conhece”, imagine nas pequenas comunidades da área rural. Logo, todos os vizinhos já sabiam: Taynara Alves de Almeida, de 20 anos, filha do pedreiro Luiz e da dona de casa Maria, iria fazer faculdade. Quase 2 anos depois, veio uma nova conquista: Taynara passou de novo. Agora, em 2 faculdades para fazer Medicina.
Desde que concluiu o ensino médio, em 2022, os sonhos de Taynara vêm ganhando forma. E essa história é conhecida e celebrada no município do Cariri. A cidade, de tão pequena, sequer tem sedes ou campus de universidades.
Assim, os estudantes naturais de Granjeiro precisam migrar para outros territórios quando “vão expandir o conhecimento” em rotas diárias, levados nos ônibus universitários rumo às demais cidades da região que têm instituições de ensino superior, ou em mudanças “definitivas” para estudar durante alguns anos.
Legenda: A casa de Taynara tem alpendre na frente, sala, dois quartos, cozinha e quintal com plantas
Foto: Davi Rocha
Taynara já fez o primeiro percurso durante 5 semestres, com idas e vindas diárias a Juazeiro do Norte, com mais de 70 km percorridos por dia, para frequentar as aulas do curso de Odontologia. Então, veio a nova conquista, e ela está prestes a iniciar a segunda rota: se mudar para Barbalha – distante 84 km de Granjeiro – para cursar Medicina.
A estudante, que é egressa da Escola Miguel Saraiva, da rede pública estadual – única de Ensino Médio na cidade – fez provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em todos os anos desta etapa de ensino, cursada em plena pandemia de Covid 19. Nesse intervalo, relata, foi percebendo que o sonho de ser médica, alimentado desde a infância, era difícil, mas não impossível.
O Diário do Nordeste publica em 2025 a quarta edição do projeto Terra de Sabidos, que neste ano tem como foco o “destino universidade”. O especial percorre Fortaleza e cidades do interior como Itarema, Ipueiras e Granjeiro, e conta experiências de egressos de escolas públicas do Ceará que acessaram a universidade, seja via Sistema de Seleção Unificada (Sisu) ou Programa Universidade para Todos (Prouni). As experiências apontam quão desafiantes, mas também recompensantes, têm sido as oportunidades que abrem portas e alteram a vida dos jovens e de quem os cerca.
Resultados obtidos antes mesmo do 3º ano, como a nota 920 na redação e 800 em matemática ainda no 2º ano, a faziam entender que a batalha pela vaga para o curso que tinha como primeira opção era árdua e demandava um desempenho acima da média, mas que o esforço somado à própria vontade davam esperanças de boas chances. “Nessa época, os meus professores já viam aquele esforço que eu fazia, me estimulavam, me davam livros”, relembra.
Ela concluiu o Ensino Médio em 2022 e, nos processos seletivos que ingressou em seguida em busca da vaga na universidade, foi aprovada em Odontologia em três instituições: na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e em dois centros universitários particulares, sendo um em Juazeiro do Norte (Ceará) e outro em São Paulo.
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Optou por cursar na instituição mais próxima, em Juazeiro. Daí, iniciou a rotina na qual percorria 70 km por dia para ir às aulas, saindo da sede de Granjeiro às 15h40 e retornando por volta de meia-noite. O trajeto era realizado em um ônibus da Prefeitura destinado a essa finalidade.
Estímulo ainda no Ensino Médio
Taynara é filha do pedreiro Luiz Alvez Filho e da dona de casa Maria das Dores de Almeida, e cursou o ensino fundamental na própria comunidade, em uma escola localizada a alguns passos de sua casa, uma residência de alpendre na frente, sala, dois quartos, cozinha e quintal com plantas frutíferas, como goiaba e banana.
A residência é “conjugada” com a da avó, uma idosa acamada cuidada pela mãe de Taynara. Na comunidade, os moradores de hábitos simples vivem basicamente da agricultura ou da prestação de serviços na sede do município.
No Ensino Médio, como a localidade não tem escola dessa etapa, Taynara foi cursar na sede, na Escola Miguel Saraiva, que fica a cerca de 5km da comunidade e para isso precisava pegar o transporte escolar.
Legenda: A familia de Taynara é da zona rural de Granjeiro
Foto: Davi Rocha
A vontade de atuar na área da saúde, recorda ela, surgiu ainda na infância. “Desde que eu era criancinha, eu sempre disse que queria ser médica. Eu fui crescendo e esse desejo aumentou. Passou de um sonho para um objetivo. No fundamental 1 eu tinha o maior foco. Eu dizia aos professores e eles me ajudavam. Sempre fui muito focada nos estudos”, relembra.
A universitária acrescenta que “sempre fui gordinha e minha mãe me levava pra fazer tratamento em Barbalha. Aí eu via os médicos e fui criando aquela admiração”. Outra inspiração é o padrinho que se formou em Enfermagem e agora irá cursar, junto com ela, Medicina.
Taynara faz um tratamento hormonal desde a infância e há cinco anos esperava para fazer uma cirurgia bariátrica. A definição sobre a realização do procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) veio no primeiro semestre do ano, sendo definido o mês de junho como período da cirurgia a ser feita no Hospital Geral César Cals, em Fortaleza. Ou seja, um pouco antes de se mudar para começar a cursar a nova graduação.
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Sobre o próprio percurso, Taynara recorda que ela pertence à geração que teve que cursar parte considerável do ensino médio em plena pandemia de Covid. Sem poder ir à escola, o jeito era acompanhar as aulas no sítio e, “quando chovia, faltava internet”, completa.
Ela também relembra que sempre quis fazer Medicina, mas “os cursinhos eram caros”, por isso, o foco tinha que ser total na formação escolar. Nessa etapa de ensino, ela fez prova do Enem no 1º, 2º e 3º ano.
Entrar na universidade
Ao encerrar o Ensino Médio, ela foi aprovada em Odontologia e optou por cursar em um centro universitário em Juazeiro do Norte. No processo via Programa Universidade para Todos (Prouni), do Governo Federal, ela recebeu uma bolsa de 100% o que garantia gratuidade para cursar a graduação.
“Assim que terminasse o ensino médio, eu queria ingressar na faculdade. Não queria ficar parada. Comecei odontologia, fiz 5 semestres e fui associando. Eu estudava lá, mas também seguia estudando em casa para tentar medicina. Eu gostei muito da experiência da faculdade, me apeguei aos professores”, explica e acrescenta que ficou no curso até o primeiro semestre de 2025.
Legenda: Taynara não fez cursinho preparatório e estudou em casa durante a pandemia de Covid
Foto: Davi Rocha
Nesse período, ela também começou a trabalhar como orientadora social na Assistência Social em Granjeiro, então, a rotina incluía: trabalho às 7h da manhã, partida para as aulas de Odontologia às 15h40, retorno depois das 23h, e alguns momentos da madrugada dedicados à realização de simulados de provas para a graduação de Medicina.
Em 2023, ela fez novamente o Enem e, em 2024, soube que teria chance de entrar em Medicina na Universidade Federal do Cariri (UFCA). O campus desta graduação fica em Barbalha.
“Todo mundo ficou muito feliz. Era um sonho e ao mesmo tempo, por ser de escola pública, a gente acha que é distante da nossa realidade. Quando eu vi, eu tinha certeza que todo o esforço tinha valido a pena e que eu nasci pra isso. Independente das dificuldades, eu iria fazer de tudo para conseguir vivenciar isso. Quero ter essa carreira para minha vida”. Taynara Alves de Almeida
Universitária e ex-aluna de escola pública
A mãe, Maria das Dores de Almeida, reitera a felicidade e recorda o dia em que souberam da conquista da vaga: “Mãe, passei pra Medicina! Ela disse aí o pessoal daqui ficou tudo feliz. Foi uma festa, tudo comemorando”. O momento a levou para outro, quando Taynara ainda era pequena, no primeiro ano escolar. No segundo mês que ela foi para a escola, ela já chegou fazendo as atividades dela, escrevendo.
“Ela sempre se resolveu sozinha. Nunca tive trabalho. Quando ela dizia que queria fazer Medicina, eu dizia: se Deus quiser você vai fazer. Eu acreditava porque ela sempre foi muito esforçada. Quando passou para Odontologia, eu dizia: mas você num quer é ser médica e ela respondia que não conseguia ficar em casa parada”.
A dona de casa acrescenta que, na região, um dos impactos de morar em uma área com uma população muito pequena é a falta de oportunidade. Para fazer faculdade, exemplifica ela, “tem que se deslocar. É difícil e as pessoas precisam ir se preparando para sair da cidade”.
Taynara relata ainda que como terá que se mudar tem se programado também financeiramente. Nesse tempo, como estava trabalhando, “vem juntando”. Com a mudança, que demandará o aluguel de uma casa na nova cidade, a família tem “ajustado a questão financeira” e ela explica que “todo mundo, os tios, parentes, ajudam também”.
Expectativas e futuro
No atual momento, as expectativas para ingressar no curso que tem 6 anos de duração estão elevadas. “Vai ter desafios. Sei que é uma faculdade que exige muito, pois é uma preparação para lidar com a vida. E além das técnicas da Medicina, é preciso saber o lado humano. Porque se a pessoa procura um médico, além de estar com alguma doença, ela está precisando de acolhimento”, ressalta, e completa que, nesse momento pré-ingresso, das especialidades, as que mais gosta são ginecologia, obstetrícia e pediatria.
Na Escola Miguel Saraiva, instituição que tem 72 anos, e é da rede pública estadual, o diretor José Wenes Pereira Lima, destaca que tem sido consolidada uma cultura de aprovação em vestibulares. Segundo ele, nos últimos 2 anos a escola conseguiu mais de 200 aprovações em universidades públicas e particulares.
Legenda: Taynara cursou 5 semestres de Odontologia antes de entrar em Medicina
Foto: Davi Rocha
No total, a unidade tem 2 turmas de 3º ano com cerca de 65 alunos por ano. Desde 2021, a unidade vem no processo de implementação do tempo integral, tendo em 2023 formado a primeira turma inserida completamente no modelo.
O diretor explica ainda que, na escola, mais de 75% dos alunos são da zona rural e eles não são apenas de Granjeiro. Devido à proximidade com alguns distritos atende também estudantes das cidades de Várzea Alegre e Lavras da Mangabeira.
“Ela era de uma turma que passou muito tempo do Ensino Médio na pandemia. Taynara, para a gente, é um exemplo de resistência e perseverança. Uma mulher negra, que vem de uma família carente, de uma comunidade muito pequena, e sempre demonstrou esse perfil de uma pessoa batalhadora. Ela será uma excelente profissional porque além de um intelecto gigante, ela é um ser humano belíssimo”. José Wenes Pereira Lima
Diretor da Escola Miguel Saraiva
Sobre Taynara, ele ressalta: “é uma aluna brilhante” e aponta que desde o ingresso da estudante, quando veio do ensino fundamental, “já tinha um status de aluna que iria dar frutos”.
Agora, a expectativa é que as novas aulas comecem. E daqui a alguns anos, quem sabe, Taynara seja a profissional que atenderá a conhecida população nas unidades de saúde da cidade. Em um plano ainda mais específico, a mãe de Taynara revela que torce: quem sabe ela possa começar a atender na própria comunidade, “no postinho de saúde, que recebe médico a cada 8 dias”. A promessa da filha de “estudar e se formar para dar uma vida melhor a vocês (aos pais)”, ela garante que já está começando a testemunhar.
Créditos
Thatiany NascimentoRepórter
Davi Rocha e Thiago GadelhaProdutores Audiovisuais
Louise Dutra/Jemmyle CunhaCriação SVM Arte/Animação
Dahiana AraújoEditora de DN Ceará
Karine ZaranzaCoordenadora de Jornalismo
G. André MeloGerente de Audiovisual
Ívila BessaGerente de Jornalismo
Gustavo BortoliDiretor de Jornalismo
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