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‘Bet municipal’: ao menos 12 prefeituras do Ceará criam loterias próprias em meio à incerteza no STF

Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) refutou o monopólio da União na exploração de loterias, em 2020, estados e municípios começaram a se organizar para operar o serviço. No Ceará, o “boom” veio neste ano: ao menos 12 prefeituras sancionaram leis criando loterias municipais – algumas já regulamentadas e em processo de concessão.

O Supremo analisa mais uma ADPF que questiona a legalidade e constitucionalidade das loterias municipais

Escrito por
Ingrid Camposingrid.campos@svm.com.br
08 de Setembro de 2025 – 06:00

Esferas coloridas de loteria com números, dentro de um globo transparente de sorteio.
Legenda: As leis municipais preveem uma série de modalidades lotéricas para exploração, entre elas, as apostas de quota fixa, conhecidas como “bets”.
Foto: Divulgação/Loterias Caixa

Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) refutou o monopólio da União na exploração de loterias, em 2020, estados e municípios começaram a se organizar para operar o serviço. No Ceará, o “boom” veio neste ano: ao menos 12 prefeituras sancionaram leis criando loterias municipais – algumas já regulamentadas e em processo de concessão.

Já o Estado apenas editou decreto, em 2024, regulamentando novas modalidades de apostas no âmbito da Lotece, que existe há décadas. Por exemplo, agora vai poder explorar as apostas de quota fixa, conhecidas popularmente como “bets”.

Por ser uma categoria prevista em legislação federal, alguns municípios também incluíram esse tipo de aposta no seu rol de exploração.

Além desta, devem ser ofertadas as modalidades de lotérica passiva (bilhetes previamente enumerados), de resultado instantâneo (as chamadas “raspadinhas”) e de prognósticos específicos (como a Timemania), numéricos (apostador tenta prever os números sorteados) e esportivos (apostador tenta prever o resultado dos eventos esportivos).

Em consulta pelos Diários Oficiais dos municípios, o PontoPoder constatou a criação das seguintes loterias no âmbito dos governos municipais:

  • Loteria Municipal do Povo de Caucaia (LOTEPOCA);
  • Loteria do Município de Barbalha;
  • Loteria Municipal de Irauçuba;
  • Loteria Municipal de Apuiarés (LOTOAPUIARÉS);
  • Loteria Municipal de Itapajé;
  • Loteria Municipal de Tauá;
  • Loteria Municipal de Itapipoca;
  • Loteria Municipal de Novo Oriente (LOTOORIENTE);
  • Loteria Municipal de Jaguaribara;
  • Loteria Municipal de Capistrano (CAPISORTE);
  • Loteria Municipal de Frecheirinha;
  • Loteria Municipal de Saboeiro.

Com a venda dos bilhetes e das apostas, as administrações esperam gerar uma nova fonte de receita para políticas públicas, já que, entre as três instâncias da federação, os municípios são os organismos com menor capacidade de arrecadação. Mesmo assim, assumem encargos volumosos.

Apesar da iniciativa, a exploração por entes subnacionais não está completamente pacificada no meio jurídico, já que o STF analisa mais uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sobre o assunto.

A petição foi protocolada em março deste ano pelo partido Solidariedade e distribuída ao ministro Kassio Nunes Marques em sequência. A Procuradoria-Geral da União (PGR) ainda não se manifestou no processo.

Entenda a burocracia das loterias

Há 25 normas federais, entre leis, decretos, portarias e ato declaratório, versando sobre a regulamentação e operação financeira das loterias. Ter a referência da União nesse caso é importante porque o STF reconheceu a competência exclusiva dessa instância em matéria de legislação.

Já a competência material para a exploração das loterias é diversa, ainda segundo o entendimento do Supremo de 2020. Nenhuma das regras citadas acima tratam expressamente sobre a exploração desse serviço por entes municipais – seja para autorização ou vedação –, mas são espelhadas nas normas locais.

Para a presidente da Associação Nacional das Loterias Municipais e Estaduais (Analome), Camila Brito, existe inércia do Congresso Nacional sobre o tema.

“O Congresso vai ter que se manifestar, porque esse vácuo de decisão tem que ser resolvido no Congresso. […] A gente sempre participa de eventos em Brasília, tenta conversar com um com outro congressista”, comentou.

 

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As modalidades lotéricas mencionadas no início da reportagem estão ancoradas na Lei Federal nº 13.756/2018 e na Lei 14.790/2023, que trata especificamente das apostas de quota fixa.

O texto classifica esse tipo como “fator de multiplicação do valor apostado que define o montante a ser recebido pelo apostador, em caso de premiação, para cada unidade de moeda nacional apostada”. Das 12 prefeituras observadas pelo PontoPoder, 11 adotam essa categoria de jogo.

Somente Caucaia não indica a exploração de apostas de quota fixa pelo município, apesar de classificar como “bet” os concursos de prognósticos esportivos, em que o apostador tenta prever o resultado de eventos esportivos, nos termos da legislação.

A lei que criou a Lotepoca “prevê ainda a regulação, assim como a vedação de plataformas não autorizadas (chamadas bets)”, diz nota da Prefeitura de Caucaia enviada ao PontoPoder. Ali, o foco são as loterias físicas e os jogos digitais, regulamentados em decreto.

Para onde vai o dinheiro?

Assim como a cidade da Região Metropolitana de Fortaleza, as demais buscam reforçar o caixa de áreas como assistência e desenvolvimento social, cultura, educação, direitos humanos, turismo, esporte, saúde e segurança pública.

Algumas cidades, como Apuiarés, afunilam mais os objetivos da receita líquida, direcionando-a à Saúde, um dos setores mais onerosos da administração pública.

Barbalha, por sua vez, especifica a proporção que cada área deve receber com o aporte das loterias da seguinte forma: 45% para combate à fome e redução da pobreza, 45% para fortalecimento dos serviços sociais e 10% para segurança pública.

Capistrano também prevê a destinação do dinheiro às secretarias de Saúde, de Trabalho e Assistência Social e de Esporte e Lazer, além do mínimo de 10% da arrecadação de prognósticos esportivos para um Fundo Municipal de Esporte.

Já o desconto do valor bruto da arrecadação será distribuído entre o pagamento de prêmios aos vendedores das apostas, ao recolhimento do imposto de renda incidente sobre a premiação e a cobertura das despesas de custeio e manutenção da operação da loteria municipal.

As atividades nas cidades observadas podem ser tocadas pelas próprias prefeituras ou delegadas a terceiros, por meio de concessões, Parcerias Público-Privadas (PPPs) e outros dispositivos. Isso exige contratações via licitações, publicadas no Diário Oficial da União (DOU).

Em contato com a Prefeitura de Barbalha, a reportagem foi informada de que ainda não há decreto de regulamentação nem o serviço começou a ser explorado. Sobre a exploração em si, explicou que “a empresa que solicita o serviço, o município só fiscaliza a cobrança do imposto sobre o serviço”.

Até o momento, apenas uma empresa acionou a gestão com esse objetivo, completa a nota. O PontoPoder não encontrou o edital licitatório em consulta ao DOU e ao sistema de licitações dos municípios disponibilizado pelo Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE). A Prefeitura foi novamente contatada para explicar, mas não houve retorno.

Caucaia, por sua vez, informou que “o processo de seleção do operador responsável está em fase de elaboração do edital, que será encaminhado ao setor de licitações e seguirá rigorosamente a Lei de Licitações e Contratos Administrativos”.

Prevenção de fraudes e crimes financeiros

As legislações municipais também se comprometem a adotar sistemas de garantia contra fraude e adulteração dos bilhetes. A fiscalização ficará a cargos de secretarias específicas, normalmente as de Finanças ou da Fazenda nos municípios.

Algumas cidades são mais objetivas no que diz respeito às sanções em casos de irregularidades. Caucaia, Barbalha, Itapajé e Capistrano, por exemplo, impõem punições como multa diária, interdição de estabelecimentos, bloqueio de plataformas eletrônicas irregulares, além daquelas de teor civil e penal.

A representante da Analome destacou a importância de o município contratar operadores qualificados, exigindo comprovação de capital social e tempo de experiência para garantir a capacidade financeira de pagar os prêmios, por exemplo.

Também em poucos casos, as prefeituras especificam procedimentos de segurança e transparência, como a comunicação ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) de dados pertinentes a prevenção da lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo.

Há a previsão, ainda, de implementar programa de compliance e de jogo responsável, a fim de prevenir o vício, nas respectivas jurisdições.

Nos últimos anos, o Coaf tem fortalecido o intercâmbio de informações e o desenvolvimento de ações em parceria com a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF). Essa articulação institucional visa coibir a atuação de empresas sem autorização para explorar apostas de quota fixa.

Entre as suas atribuições, o órgão recebe, examina e identifica informações relacionadas a suspeitas de atividades ilícitas, produzindo e gerenciando informações de inteligência financeira.

 

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O acompanhamento dos fluxos financeiros das loterias federais já ocorre há mais tempo. Em relatórios anteriores, relativos aos anos entre 2002 e 2006, o Coaf já apontou indícios de lavagem de dinheiro em loterias da Caixa Econômica Federal com suposta conivência de funcionários, usando mecanismos como a compra de bilhetes premiados de vencedores reais.

Aliado a isso, a SPA/MF editou portaria em 2024 com as políticas, procedimentos e controles internos de prevenção à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa, além de outros delitos correlatos, que devem ser adotados pelos agentes operadores de apostas de quota fixa.

Entre as exigências, a apresentação de um relatório anual à SPA/MF até 1º de fevereiro do ano subsequente, detalhando as boas práticas de combate a irregularidades e crimes.

Competência material x legislativa

Sem legislação federal específica, os municípios aproveitam as entrelinhas do julgamento de 2020 sobre das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 492 e 493 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4986.

No pedido para ingressar como amicus curiae em outro processo – este em curso, a ADPF 1212 – a Associação Nacional das Loterias Municipais e Estaduais resgatou os votos de Gilmar Mendes e de Alexandre de Moraes naquela ocasião.

Os ministros enquadraram as loterias como típicas atividades de serviço público, da qual se podem extrair diferenciações a respeito da competência legislativa sobre o assunto, restrita à União, e da competência material de exploração do serviço, que não é monopólio do Governo Federal. Veja os trechos destacados na petição da Analome:

 

Me parece acertado inferir que as legislações estaduais (ou municipais) que instituam loterias em seus territórios tão somente veiculam competência material que lhes foi franqueada pela Constituição. […] É lícito concluir, portanto, que a competência da União para legislar exclusivamente sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive loterias, não obsta a competência material para a exploração dessas atividades pelos entes estaduais ou municipais
Gilmar Mendes

Ministro do STF

 

 

Por não existir expressa vedação aos estados e municípios, a União não poderia – nos termos do art. 19, III, da Constituição, que consagra uma das importantes vedações federativas –, ao exercer sua competência legislativa privativa, criar distinções ou preferências entre União e estados, entre União, estados e municípios ou entre estados diversos.
Alexandre de Moraes

Ministro do STF

 

A discussão, contudo, não parou por aí. O partido Solidariedade (SD) ajuizou a ADPF 1212 pedindo, em caráter liminar, a eficácia de todas as leis municipais que instituíram loterias e os procedimentos licitatórios em curso, bem como a exploração dos serviços já licitados.

No mérito, pede que o STF declare a inconstitucionalidade das normais locais que estabeleçam sistema lotérico, sorteios ou sistemas de apostas próprios, e que oriente os Municípios a não editarem tais leis.

A legenda argumenta que, ao criar benefícios próprios de arrecadação “em detrimento da União e dos estados” e supostamente servir de “refúgio a agentes nocivos do mercado de apostas”, os municípios enfraquecem a ideia de livre concorrência, invadem a competência legislativa privativa da União e afrontam o princípio federativo, previstos na Constituição Federal de 1988.

O SD alega, ainda, que as prefeituras tiveram uma interpretação equivocada de decisões anteriores do STF, que teriam assentado a competência material dos estados na questão das loterias, sem abranger a jurisdição municipal.

Para isso, cita casos de cidades paulistas, mineiras, goianas, paranaenses e gaúchas, além de uma carioca (Miguel Pereira) e outra potiguar (Bodó). Segundo a Analome, as duas últimas são algumas das poucas em funcionamento no Brasil atualmente.

A denúncia do partido aponta que empresas como a AMZ Loterias do Brasil Ltda., vencedora em São Vicente/SP e operadora em Poá/SP, não constam na lista de autorizadas pela SPA/MF. Em complemento, a “Poá da Sorte” oferece jogos como “Cigana da Sorte” e “Caçador de Prêmios”, prática não regulamentada.

 

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Outra prática suspeita, segundo o SD, é a concessão com valores ínfimos e ausência de controle federal, como detectado em Bodó. Ali, 38 empresas foram credenciadas para explorar serviços lotéricos virtuais por uma outorga de R$ 5 mil, valor bem distante do teto de R$ 30 milhões estipulados pelo Ministério da Fazenda.

Quanto a isso, a Analome ressalta que os entes federados têm autonomia para definir o valor da outorga. “Vale salientar que, além da outorga fixa, podem ser criadas outorgas variáveis. Alguns municípios exploram mais a outorga variável, outros exploram mais a fixa. A lei diz que pode ser de até R$ 30 milhões”, diz Camilo Brito.

Do outro lado do cabo de guerra, aliada à argumentação do SD, está a Advocacia-Geral da União (AGU). Como representante do Poder Executivo Federal, tem se manifestado pela falta de respaldo constitucional e legal das loterias municipais.

Esta postura é consistente com a tentativa histórica da União de impedir estados de operar loterias, nas palavras do presidente da Analome. Para ele, o Governo Federal busca diminuir a concorrência e concentrar a arrecadação das outorgas.

Muitos municípios citados na ação também se pronunciaram nos autos. A PGR, como mencionado no início deste texto, ainda não emitiu seu parecer sobre o assunto. Enquanto isso, as prefeituras acompanham a discussão em Brasília, como indicaram Barbalha e Caucaia em contato com a reportagem.

“Em relação à ADPF 1212, a Prefeitura de Caucaia reforça seu compromisso com o cumprimento das decisões judiciais. Atualmente, os Tribunais Superiores entendem que os municípios têm competência para instituir suas próprias loterias, e isso já é realidade em diversas cidades do porte de Caucaia. No entanto, caso haja alteração nesse entendimento, o município seguirá integralmente o que for determinado pela Justiça”, complementou a nota.

O que dizem os municípios e os órgãos de controle

PontoPoder buscou esclarecimentos sobre o processo de instalação do serviço, seja online ou físico, nas administrações municipais, bem como a prestação de contas e a expectativa de retorno financeiro.

Para isso, buscou as prefeituras de Caucaia, Barbalha, Irauçuba, Apuiarés, Itapajé, Tauá, Itapipoca, Novo Oriente, Jaguaribara, Capistrano, Frecheirinha e Saboeiro. Apenas as duas primeiras responderam aos questionamentos da reportagem.

Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE), responsável por fiscalizar a aplicação dos recursos públicos, sejam eles oriundos de receitas próprias, transferências intergovernamentais ou outras fontes legalmente instituídas, também foi acionado.

Em nota, explicou que “caso haja exploração de loterias municipais por parte das prefeituras, os valores arrecadados e sua destinação passam a integrar a receita orçamentária do Ente, estando sujeito ao controle externo exercido pelo Tribunal”.

O TCE detalhou, ainda, que a fiscalização poderá ocorrer “tanto de forma direta, por meio de auditorias específicas, quanto de forma indireta, na análise da execução orçamentária e financeira durante as prestações de contas municipais”.

Ministério Público do Ceará (MPCE) foi outro órgão procurado no curso da apuração. A devolutiva ocorreu por meio de nota – sucinta – sobre os trabalhos do MPCE acerca das loterias municipais. Leia na íntegra:

 

O Ministério Público do Ceará informa que vem acompanhando a criação de loterias municipais no estado. O órgão está buscando diagnosticar eventuais irregularidades a fim de garantir que as loterias sigam o que determina a lei e o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o assunto.

 

Questionado se havia procedimento específico de acompanhamento ativo dos 12 municípios mencionados, o órgão não se pronunciou.

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Carlos Alberto

Oi, eu sou o Carlos Alberto, radialista de Campos Sales-CE e apaixonado por futebol. Tenho qualidades, tenho defeitos (como todo mundo), mas no fim das contas, só quero viver, trabalhar, amar e o resto a gente inventa!

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