Eleito por 49% dos entrevistados em levantamento feito pelo Ministério da Cultura, iguaria tem raiz sertaneja e pode levar de toucinho e queijo coalho até pequi na preparação

Qual prato vem à sua cabeça quando o assunto é gastronomia cearense? Ao que tudo indica, o baião de dois reina soberano. É o que atesta a pesquisa Cultura nas Capitais, realizada pelo Ministério da Cultura, JLeiva, Itaú e Instituto Cultural Vale em parceria com a Fundação Itaú. Nela, 49% dos entrevistados elegeram o baião como prato típico principal da cidade, seguido de cuscuz (11%), feijão (8%), peixe e frutos do mar (7%), guisados (5%) e carnes (4%).
Apesar de previsto, o dado convoca outros olhares sobre nossa delícia. Um dos mais interessantes diz respeito ao fato de que o baião de dois, da forma como conhecemos, tem origem genuinamente cearense, com raízes no sertão. A história do prato remonta ao cotidiano das famílias sertanejas, que, em tempos de escassez, aproveitavam sobras de arroz e feijão para criar algo único, saboroso e nutritivo.
“O baião teria nascido da prática das mulheres dos vaqueiros de levarem as sobras da cozinha das fazendas. Ao reaquecerem em casa, acrescentavam ingredientes como queijo e toucinho”, introduz Paola Vasconcelos, jornalista, gastrônoma e mestre em Gastronomia pela Universidade Federal do Ceará, pesquisadora sobre cultura alimentar cearense.
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Segundo ela, a iguaria é, assim, um reflexo da cozinha de épocas passadas, desenvolvida tendo como influência processos históricos (reflexos da colonização), econômicos (ciclos do couro, das charqueadas e do algodão), geográficos (semiárido e sazonalidade climática) e sociais (pobreza), tudo enfrentado de forma criativa e resiliente pelo povo cearense.
Feito da mistura básica de arroz e feijão – elementos universais da alimentação brasileira, presentes na mesa da população diariamente – o baião simboliza uma comida de “sustância”, ligada à memória afetiva, criatividade diante da escassez e valorização dos ingredientes locais. “O fato de 49% dos entrevistados o elegerem como prato típico reforça o sentimento de pertencimento e orgulho que os cearenses têm em relação à própria cultura alimentar”.

Vale ressaltar, porém, que várias culturas alimentares mundo afora também utilizam a versátil e nutritiva mistura do arroz com feijão. Um dos exemplos é o prato caribenho “Moros y Cristianos”, feito com arroz e feijão preto, e o “arroz de feijão” de Portugal.
Essas misturas, não à toa – principalmente de pratos feitos em uma única panela, como a paella espanhola e o cassoulet francês – refletem nossas heranças ancestrais, capazes de promover uma miscigenação de povos, etnias e culturas.
Sabor além-fronteira
Se os primórdios do prato remontam a classes menos favorecidas, tudo mudou depois. O baião ganhou destaque também nas cozinhas dos patrões e nas mesas de todo o Estado, tornando-se símbolo da cultura alimentar do Ceará. Não é exagero dizer que a delícia nasceu no sertão cearense e atravessou as fronteiras dos estados nordestinos.
“Ele se estabeleceu em cada lugar agrupando insumos e pequenas especificidades ligadas à questão do território e ao povo referente a ele. No próprio Ceará, temos muitos ‘baiões’ de dois. Existe baião de dois com fava, feijão-verde, feijão-de-corda, toucinho, carne de charque, queijo coalho, caldo de galinha e até com leite de coco, de textura solta ou molhada (ligada). Na Paraíba e em Pernambuco, existe uma variante dessa iguaria chamada de rubacão”.

Tem mais: é rico em sabor, nutrientes, diversidade e versatilidade. De acordo com Paola Vasconcelos, ele está presente em todas as regiões cearenses – sertão, serra e litoral – com singularidades e insumos de cada região complementando a mistura básica. Isso porque combina ingredientes que se harmonizam perfeitamente e permitem infinitas variações.
“No sertão, é mais robusto e leva toucinho, queijo coalho, coentro e até maxixe; na serra, pode incluir fava no lugar do feijão, pimentão e tomate; já no litoral, é comum o uso de feijão verde ou fradinho e leite de coco, acompanhando peixes e frutos do mar”

“No nosso Cariri, o pequi é uma estrela do baião de dois. Essa pluralidade reflete a criatividade e adaptabilidade do povo cearense, tornando-o uma iguaria cobiçada em diferentes contextos — do restaurante refinado à casa simples do interior”.
Sem falar no valor nutricional: segundo a Tabela Brasileira de Composição de Alimentos (TBCA), uma porção de 100g da versão tradicional feita com arroz, feijão-de-corda, queijo coalho, toucinho e temperos oferece proteínas, fibras, ferro, cálcio, potássio e vitaminas do complexo B. Refeição completa, que sacia e nutre, rica em energia e nutrientes.
Baião como protagonista
Sabor poderoso capaz até de nomear estabelecimentos. Um deles é o Rei do Baião. Localizada na Avenida Heráclito Graça, 699, a casa nasceu em agosto de 2013 com o desejo de levar aos clientes uma imersão na culinária nordestina na qual o foco era o baião de dois. Por lá, a delícia é servida em porções ou como acompanhamento.
São quatro tipos disponíveis no cardápio:
- Baião Tradicional: opção leve, bem temperada, com pegada mais regional;
- Baião Especial: baião mais molhadinho, com nata e queijo, queridinho dos clientes;
- Baião com carne do sol: baião cremoso com nata, queijo e carne do sol desfiada, bem diferente, lembrando os primeiros baiões de dois;
- Baião à moda do Rei: sortido, unindo baião molhadinho com nata e queijo junto à carne do sol desfiada, calabresa e bacon. O resultado é um sabor bem especial.
“Os valores são cobrados a depender do tamanho da porção, indo do mini tradicional, por R$ 9,90, ao nosso Baião à Moda do Rei, por R$ 36,90”, situa Kleber Reis, gerente do restaurante. Segundo ele, a média semanal de produção do prato é de 100 quilos.
“Muitas pessoas também pedem para delivery. Algumas até vêm de outras cidades só para apreciar o nosso baião e, com isso, ficamos muito felizes em saber que um prato tão típico, feito de maneira especial, agrada tantas pessoas”.
Para o futuro, o foco é manter o baião tradicional, mas também inovar na forma como é servido, sobretudo as opções Baião À Moda do Rei e o Baião de Carne de Sol. Ou seja, preservar as raízes ao mesmo tempo que mergulha nas diferentes possibilidades.
Mais que um prato, um patrimônio
Todo esse mergulho no baião de dois imprime uma verdade: além de ícone de nossa cultura alimentar, trata-se de um prato com forte valor afetivo e cultural, o que garante a permanência dele no imaginário e no paladar do povo cearense. Um patrimônio alimentar, com caráter dinâmico e ao mesmo tempo tradicional, se reinventando constantemente.
“Surgem versões vegetarianas, gourmetizadas e até reinterpretadas na alta gastronomia. A tradição certamente seguirá viva, mas com espaço para inovações que respeitam as raízes”, analisa Paola Vasconcelos, que também dimensiona o valor dos outros insumos eleitos na pesquisa como os pratos típicos preferidos.
De acordo com ela, o cuscuz, por exemplo, é presença diária nas casas de todo o Ceará; o feijão é base alimentar; frutos do mar remetem aos nossos mais de 570 km de praias; por sua vez, guisados e carnes, a exemplo de galinhas, carneiros e o nosso “cozidão” de boi são comuns tanto na serra quanto no sertão.

“Adicionamos nesse contexto pratos feitos a partir de miúdos e vísceras, como a panelada, a buchada, o sarrabulho, o sarapatel e a língua de boi – iguarias que, em Fortaleza, podemos encontrar no autêntico guardião da cultura alimentar cearense, o Mercado São Sebastião. Esses alimentos citados pela pesquisa revelam uma culinária marcada pela diversidade de insumos, modos de preparo e sabores que representam nossa identidade cultural”.
Ela igualmente defende que levantamentos feito o “Cultura nas Capitais”, assim como outros apanhados científicos e de cunho patrimonial, ajudam a valorizar o que temos de mais autêntico em nossa cultura alimentar. Ao reconhecer os pratos mais amados e consumidos, valorizamos nossos ancestrais, memórias gastronômicas e nossa história como cidadãos cearenses, criando uma base para ações educativas, políticas públicas culturais e patrimoniais,
“Valorização da agricultura familiar e desenvolvimento de um turismo gastronômico sustentável também entram como bônus. Conhecer e reconhecer o que comemos é também uma forma de preservar nossa história e estimular o orgulho de ser cearense”.
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