A pele do jumento é matéria-prima para a produção do ejião, remédio popular da medicina chinesa. Número dos animais no Ceará reduziu pela metade entre 2006 e 2017, segundo os dados mais recentes

Figura emblemática da cultura nordestina, os jumentos já foram utilizados para transporte de carga e pessoas no interior do Ceará e aliados na agricultura familiar, mas foram trocados por motos e máquinas ao longo do tempo. Em número cada vez mais reduzido e despertando pouca compaixão na sociedade, eles costumam ser abandonados, o sofrimento deles passa a ser normalizado e ativistas suspeitam de tráfico dessa espécie para abate e exportação.
Só nos cinco primeiros meses de 2025, pelo menos 689 jumentos foram recolhidos pelo em rodovias cearenses, segundo informações do Departamento Estadual de Trânsito do Ceará (Detran-CE), e levados para currais. Aqueles que possuem donos podem ser retirados em até sete dias, mas caso contrário eles são levados para uma fazenda em Santa Quitéria, a 257 km de Fortaleza, onde recebem tratamento, incluindo exames e vacinas.
O mesmo ocorre com outros animais de médio e grande porte. “Como o cavalo, vaca, carneiro tem valor comercial, os donos pagam a multa e vão buscar, e os jumentos ninguém vai buscar e eles vão ficando, justamente porque não têm valor comercial”, afirma Débora Façanha, pesquisadora da Rede Jumentos do Brasil: Futuro Sustentável e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Dados da Organização Não Governamental (ONG) The Donkey Sanctuary apontam que, em quatro décadas, a população de jumento brasileiro, espécie que só existe no Brasil, reduziu 94%, correndo o risco de desaparecer. Em paralelo, cerca de 248 mil deles foram abatidos entre 2018 e 2024.
Não existem dados atualizados sobre o rebanho de jumentos no Ceará, mas informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram a redução da presença deles no Estado. De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, o mais recente disponível, havia aproximadamente 53,2 mil asininos — como jumentos, jegues, burros e asnos — no Estado, metade do que o levantamento havia registrado em 2006 e 78,2% a menos do que em 1970.
O comércio da pele de jumento
O desaparecimento dos rebanhos, não só no Ceará, e o alto número de abates desperta suspeitas em pessoas que atuam pela proteção animal. A Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA) confirmou, em nota, que o Ceará não tem frigoríficos autorizados pelo Serviço de Inspeção Federal (SIF) para o abate de jumentos. Atualmente, o Brasil tem três desses estabelecimentos, todos na Bahia.
A pele desses animais é matéria-prima para a produção do ejião, um remédio popular da medicina chinesa que promete rejuvenescimento, redução da insônia, fim da impotência sexual e outros benefícios. Contudo, não há eficácia comprovada. O Brasil entrou nesse comércio em 2016, devido à redução do número de jumentos presentes na China.
“Oficialmente, não existe abate no Ceará. Mas esses jumentos desapareceram, e existe sim uma suspeita de que esses animais estejam sendo traficados. (…) Já ouvi relatos de vários estados, do Piauí, do Maranhão. No Ceará também não é diferente, porque os animais desaparecem. Simplesmente desapareceram das estradas, desapareceram das fazendas”, afirma a professora Débora Façanha.
Ela aponta que os jumentos têm ciclo de vida longo e levam tempo para chegar na idade reprodutiva — demorando tanto para gerar uma cria quanto para essa cria chegar ao ponto ideal de abate ou de se reproduzir novamente. “A reposição de animais (ocorre em) uma velocidade muito menor do que a velocidade com que eles estão sendo abatidos É isso que está causando essa diminuição muito brusca na população”, explica.
De acordo com a Lei de Crimes Ambientais e com o artigo 225 da Constituição Federal, é considerado crime qualquer prática que diminua a população, a ponto de colocar em risco de extinção. E com os jumentos ninguém liga para isso.
Um levantamento elaborado pelo The Donkey Sanctuary em 2019 afirma que os animais passam horas confinados durante o transporte, sem acesso à água e alimentos adequados, nem atendimento veterinário. Como são encontrados aleatoriamente, segundo a publicação, existe um risco sanitário, uma vez que não é possível reconhecer a situação de saúde deles.
O abate desses animais é feito de forma extrativista, sem uma cadeia produtiva que renove o rebanho. É o que explica a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, movimento que existe desde 2016 em defesa dos direitos dos animais. No Ceará, Stefani Rodrigues compõe a coordenadoria estadual e corrobora com os dados.
“A gente tomou conhecimento de que vários animais estavam sendo acolhidos em fazendas e atravessadores estavam levando esses animais de forma clandestina para serem abatidos na Bahia”, denuncia Stefani. No geral, de acordo com ela, os animais são pegos na natureza ou são roubados em propriedades privadas para serem vendidos.

Ela chegou a fazer um boletim de ocorrência em agosto de 2024 para denunciar maus-tratos contra animais e solicitar investigação após presenciar um caminhão levando diversos jumentos em uma rodovia federal, na altura de Angicos, no Rio Grande do Norte. Segundo Stefani, os animais seriam levados do Ceará para lá e, em seguida, para a Bahia, por atravessadores.
Érica de Caria, responsável pelo Santuário Lar dos Pancinhas, em Amontada, no Ceará, avalia que não existe interesse em cuidar dessa espécie. “Ninguém quer jumento, eles não têm utilidade, nem valor comercial, então só sobra o abate”, afirma.
No Lar dos Pancinhas, são 83 jumentos cuidados por Erica e o custeio vem do próprio bolso ou de pessoas que apoiam a causa. “Enquanto eu puder, vou lutar por ele, estou nessa causa há quatro anos. Eu sei que só vão restar os jumentos de abrigo porque para o restante, infelizmente, a extinção é certeira”, afirma.
Além da pele, a carne do jumento também é comercializada, gerando outra preocupação, segundo Stefani. Esses animais traficados não são testados e podem transmitir com doenças que atingem o ser humano, como a mormo. Essa infecção é causada pela bactéria Burkholderia mallei e se manifesta de forma leve ou crônica, podendo ser altamente letal. Sem cura, os jumentos infectados devem ser sacrificados.
Veja também
Importância econômica e cultural
Historicamente usados como transporte de carga e pessoas no interior do Ceará, o jumento foi um importante aliado da agricultura familiar. Trazido pelos portugueses, ele adaptou-se bem ao clima semiárido logo que chegou ao Brasil. Hoje, existem três tipos de jumentos no País:
- Nordestino: são os mais tradicionais na Região do Nordeste e considerados símbolos culturais. Esses são utilizados para o transporte, tração e lavoura no semiárido.
- Brasileiro ou paulista: originalmente do Estado de São Paulo, possuem pelagens avermelhadas e são rústicos.
- Pêga: comum em Minas Gerais, são marchadores, rústicos e possuem maior estatura, de 135 cm.
Com o passar dos anos, os animais perderam essa utilidade rural devido à popularização das motocicletas e máquinas agrícolas. Com isso, eles passaram a ser abandonados às margens das rodovias, podendo ser atropelados ou causar acidentes.

Iniciativas para proteção
Com a falta de dados recentes sobre a quantidade de jumentos existentes no Estado, pesquisadores da UFC, em parceria com equipes de outras universidades e com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM Bio), vão criar o Observatório da Proteção Animal no Ceará e fazer um levantamento sobre esses animais. As atividades já tiveram início, com a realização das primeiras reuniões no Parque Nacional de Jericoacoara, segundo Débora Façanha.
“No Ceará, UFC, UFCA (Universidade Federal do Cariri) e Uninta (Centro Universitário Inta) estamos unidos, junto com o pessoal do ICMBio e algumas ONGs, com objetivo de traçar estratégias para a proteção do jumento no Ceará”, afirma.
Além disso, a professora também conta que a UFC tem outra parceria com o Detran para a criação de um projeto de monitoramento e manejo sanitário dos jumentos apreendidos pela autarquia nas estradas cearenses. “O objetivo é unir a Universidade à gestão pública para aumentarmos a capacidade de cuidados e manejo ético dos animais”, explica Débora Façanha.

Projetos em tramitação no legislativo
Stefani também afirma que não existe política pública voltada para a proteção desses animais. O que se têm no Ceará, atualmente, é a Política de Proteção Animal, que prevê como maus-tratos “praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal, comprometendo a sua integridade sanitária, física, psicológica e comportamental”.
A lei criminaliza “obrigar animais a trabalhos excessivos ou superiores às suas forças e a todo ato que resulte em sofrimento para deles obter esforços que, razoavelmente, não se lhes possam exigir senão com castigo”.
Além disso, o Projeto de Lei (PL) nº 391/2024, de autoria do deputado Renato Roseno (Psol), propõe a proibição do abate de jumentos em todo o Estado, com permissão apenas em casos de doenças infectocontagiosas.
“O comércio internacional de pele implica captura ou compra, transporte irregular, confinamento e abate dos animais para exportação de sua pele, não havendo cadeia produtiva, o que caracteriza a atividade como extrativista”, justifica o parlamentar.
O texto acrescenta que, pela falta de rastreabilidade nessa cadeia, a atividade apresenta riscos à biossegurança. “O mormo, zoonose que acomete equídeos, possui letalidade de 95% para humanos, e um surto dessa doença seria potencialmente catastrófico, especialmente devido às crescentes preocupações de especialistas do mundo todo em relação à resistência antimicrobiana”, complementa.
O deputado também propôs o reconhecimento dos jumentos como de relevante interesse ambiental e cultural, no PL nº 401/2024, buscando “conscientizar a população quanto à importância e proteção dessa espécie”. Os dois projetos foram distribuídos para a Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece).
Veja também
No âmbito nacional, está tramitando um projeto apresentado pelo deputado Célio Studart (PSD), em agosto de 2024. O PL nº 3279/2024 torna obrigatórias a fiscalização e a vistoria de todo veículo que esteja transportando jumentos e outros asininos, como burros e mulas. Segundo o texto, essa atividade deve ser realizada pela Polícia Rodoviária Federal, em todo o território nacional.
O objetivo, com a fiscalização, é averiguar as questões sanitárias do transporte, além da documentação de propriedade, compra e venda dos animais. O parlamentar defende que é necessário garantir o cumprimento de regras sanitárias, a legalidade da comercialização, o bem-estar animal e o controle sobre o abate.
“A fiscalização do transporte permitirá que a PRF verifique a origem e o destino dos animais, garantindo que sejam encaminhados para estabelecimentos autorizados e que as práticas de abate sejam realizadas de forma humanitária e dentro dos parâmetros legais”, escreve o deputado.
O projeto foi distribuído às Comissões de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR); de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; de Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
No dia 11 de junho, a CAPADR aprovou o parecer do relator, Nelson Barbudo (PL-MT), pela rejeição do projeto de lei. O parlamentar argumenta que a proposta apresenta desafios operacionais e administrativos, dificultando que ela seja implementada.
“Ressalte-se que a PRF já efetua regularmente a fiscalização de veículos utilizados para o transporte de asininos, uma vez que os transportadores estão sujeitos a punições tanto pela Lei de Crimes Ambientais quanto pelo Código de Trânsito Brasileiro no caso da ocorrência de maus-tratos aos animais”, completou o relator.
Adcionar comentário